sexta-feira, 3 de novembro de 2017

O sorvete solitário

(caio silveira ramos)

(para Dona Janda, por gostar de bolo com sorvete)

Há um episódio de “Os Simpsons” em que o personagem Homer abre o freezer e se vê diante de vários potes de sorvete. Ele abre o primeiro pote e se revela um sorvete do tipo “Napolitano” em que as “faixas” de creme e morango estão intactas, enquanto a parte reservada ao chocolate está completamente vazia. Visivelmente decepcionado, ele vai abrindo as outras caixas e em todas a situação é a mesma: creme e morango até a boca dos potes e o espaço do chocolate completamente vazio. Ao abrir o último frasco, inconformado, grita para a esposa: “Margie, precisamos comprar mais sorvete Napolitano!”.
Quando eu era pequeno, não entendia por que as pessoas compravam sorvete “Napolitano” se “todo mundo gostava mesmo era o de chocolate”. Depois ficava aquela disputa feroz e o meu sabor preferido acabava bem antes dos outros tipos de sorvete.
Não passou muito tempo e eu acabei concluindo que o “Napolitano” talvez fosse mais democrático que o exclusivo de chocolate, afinal, sempre tem alguém que não come esse sabor e não seria justo deixar tal pessoa passando vontade.  Ou quem sabe a razão fosse outra: um pote só de chocolate seria mais ou menos como um final de semana dentro das férias: não teria a mesma graça.
E foi justamente durante umas férias no começo da década de 1980 que algo novo me chamou a atenção: eu estava em Peruíbe, na casa da família do meu amigo Rogério Nakamura. Tínhamos acabado de almoçar, o calor era violento e nós dois ficamos como uma vontade absurda de tomar sorvete.  Dona Marta nos deu dinheiro e, debaixo de um sol impiedoso, saímos alucinados de bicicleta atrás da nossa sobremesa.
Devia ser domingo à tarde de um janeiro: quase todos os bares e padarias estavam fechados. E os que estavam abertos não tinham mais nem um picolé pra contar história. Rodamos, rodamos, fomos longe, com o sol castigando sem dó, quando encontramos um armazenzinho perdido no tempo e no espaço. E dentro do freezer de sorvetes se materializou um único e solitário tijolinho de sorvete de morango Kibon. 
Naquela época, os sorvetes de massa para levar para casa ou vinham em embalagens de plástico grandes ou em tijolinhos embalados apenas com papelão. Esses tijolos, quando rasgado o papelão, deviam ser consumidos rapidamente, pois sem embalagem alguma (que nada tinha de térmica) derretiam num instante.
Pois eu e meu amigo Rogério retiramos o tal tijolinho de sorvete de morango de dentro do freezer como quem encontra um tesouro. Pagamos e o dono do armazém colocou a embalagem num saquinho de plástico que rapidamente o Rogério amarrou no guidão da sua bicicleta. E com medo que nossa riqueza derretesse no caminho, voamos até chegar à casa.
Domingo, calor, depois do almoço: a família toda cochilava em algum canto. Pegamos um prato fundo e duas colheres, nos sentamos na soleira da porta da cozinha e rasgamos a embalagem de papelão sobre o prato. O sorvete já estava começando a derreter, então não perdemos tempo: mergulhamos no sorvete com vontade. Cada um com sua colher. Nunca nada parecera tão gostoso: a consistência, a textura, o sabor, o frescor explodindo na boca e descendo pela garganta.  Num segundo, o papelão desmanchado sobre o prato não tinha mais nenhum vestígio de sorvete. E solenes, sabedores da importância daquele momento, jogamos a embalagem no lixo.
Durante todos esses anos, experimentei muitos tipos e sabores de sorvete: receitas simples ou mais elaboradas, algumas sublimes. Mas poucas se aproximaram do prazer proporcionado por aquele tijolo de sorvete de morango.
E hoje, quando me vejo diante de um pote de sorvete “Napolitano”, nunca deixo de pegar algumas colheres do de morango, provavelmente para me lembrar daquele sorvete tomado com tanta satisfação na soleira da porta de uma cozinha estacionada no tempo. E me dou conta de sempre reparar que os grandes prazeres da vida estão nas coisas mais singelas.
Ou simplesmente constato que o sorvete de chocolate ainda é disparado o mais gostoso.


 Publicada no Jornal de Piracicaba em 12 de fevereiro de 2017 sob o título de Morango rejeitado

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