sexta-feira, 3 de novembro de 2017

Indomável

(caio silveira ramos)

Eu ficava ali observando o pai em frente ao espelho: o cabelo ondulado, ainda umedecido, calmamente penteado pela velha escova.  Uma escova de madeira plana e escura, a parte ovalada abrigando as cerdas de náilon duras e amareladas.  Talvez o tempo e o uso tivessem reinventado as cores da madeira e das cerdas, mas para mim a escova sempre foi daquele jeito. Infinita como o pai.
Fui crescendo e os fios grossos foram modelando minha cabeleira cada vez mais volumosa.  As manhãs encontravam minha cabeça envolta num emaranhado intrincado e rebelde, enredando qualquer pente desavisado que passasse por perto. Até que pedi ao pai que me emprestasse a escova. Que finalmente domou sem dor as manhãs e o cabelo.
Então, nós dois passamos a compartilhar a velha escova. Nos sábados, enquanto ele cochilava leve ou ouvia de olhos fechados um programa de chorinho que passava na TV, eu apanhava a escova, redesenhava seu cabelo e invertia o sentido de suas sobrancelhas, transformando o pai em pai-monstro, pai-brinquedo, pai-riso.  Depois reconstruía seu cabelo e ele podia voltar a ser simplesmente o pai.
Quando fui para a faculdade em São Paulo, deixei nosso tesouro só para ele e tentei domar meu cabelo com pentes e até escovas parecidas. Mas nada funcionou. E as manhãs tornaram a encontrar o voluntarismo de uma cabeça emedusada. 
Novamente o total desprendimento do pai veio em meu socorro: num domingo à noite, desfazendo minha mala já em São Paulo, encontrei a escova protegida pela roupa limpa. Fui até um orelhão, liguei para o pai, que riu seu riso de marotagem e completou: “meu cabelo já está domado. Agora ela é só sua”.
Depois de tantos anos, o presente do pai continua lá, socorrendo minhas manhãs dos nós que se apresentam com o novo dia.  Mas durante as faxinas mais pesadas, sempre há alguém que pergunta: “pode jogar fora essa escova velha?”.  Corro para proteger meu tesouro, falo de sua importância, da qualidade da madeira, da consistência única das cerdas. A pessoa ri e a escova se abriga novamente dentro da gaveta.
Por esses dias, nova faxina pesada. E a antiga pergunta rodopia mais uma vez no ar. Dessa vez, porém, meu filho se antecipa e vem me proteger: “não pode jogar a escova fora: é a única lembrança que o papai tem do pai dele!”.
Agradeço ao pequeno, mas digo a ele que não é a única lembrança: eu tenho os livros, as fotos e outros singelos sinais da presença do pai. E mais importante que isso tudo: mesmo que a escova, os livros, as fotos e todos os sinais se percam, eu terei o pai sempre comigo, nos meus passos, nos meus sentidos, no meu pensamento.
O pequeno me sorri compreendendo.
E enquanto passeio com os dedos pelos fios grossos do seu cabelo cheio, percebo que a velha escova de madeira do pai ainda irá domar muitas outras manhãs.
E todos os nós do dia se desatarão.



Ilustração de Maria Luziano - cedida pelo Jornal de Piracicaba
Publicada no Jornal de Piracicaba em 9 de abril de 2017


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