(caio silveira
ramos)
Eu ficava ali observando o pai em
frente ao espelho: o cabelo ondulado, ainda umedecido, calmamente penteado pela
velha escova. Uma escova de madeira
plana e escura, a parte ovalada abrigando as cerdas de náilon duras e
amareladas. Talvez o tempo e o uso
tivessem reinventado as cores da madeira e das cerdas, mas para mim a escova
sempre foi daquele jeito. Infinita como o pai.
Fui crescendo e os fios grossos
foram modelando minha cabeleira cada vez mais volumosa. As manhãs encontravam minha cabeça envolta num
emaranhado intrincado e rebelde, enredando qualquer pente desavisado que
passasse por perto. Até que pedi ao pai que me emprestasse a escova. Que
finalmente domou sem dor as manhãs e o cabelo.
Então, nós dois passamos a
compartilhar a velha escova. Nos sábados, enquanto ele cochilava leve ou ouvia
de olhos fechados um programa de chorinho que passava na TV, eu apanhava a
escova, redesenhava seu cabelo e invertia o sentido de suas sobrancelhas,
transformando o pai em pai-monstro, pai-brinquedo, pai-riso. Depois reconstruía seu cabelo e ele podia
voltar a ser simplesmente o pai.
Quando fui para a faculdade em
São Paulo, deixei nosso tesouro só para ele e tentei domar meu cabelo com
pentes e até escovas parecidas. Mas nada funcionou. E as manhãs tornaram a
encontrar o voluntarismo de uma cabeça emedusada.
Novamente o total desprendimento
do pai veio em meu socorro: num domingo à noite, desfazendo minha mala já em
São Paulo, encontrei a escova protegida pela roupa limpa. Fui até um orelhão,
liguei para o pai, que riu seu riso de marotagem e completou: “meu cabelo já
está domado. Agora ela é só sua”.
Depois de tantos anos, o presente
do pai continua lá, socorrendo minhas manhãs dos nós que se apresentam com o
novo dia. Mas durante as faxinas mais
pesadas, sempre há alguém que pergunta: “pode jogar fora essa escova
velha?”. Corro para proteger meu
tesouro, falo de sua importância, da qualidade da madeira, da consistência
única das cerdas. A pessoa ri e a escova se abriga novamente dentro da gaveta.
Por esses dias, nova faxina
pesada. E a antiga pergunta rodopia mais uma vez no ar. Dessa vez, porém, meu
filho se antecipa e vem me proteger: “não pode jogar a escova fora: é a única
lembrança que o papai tem do pai dele!”.
Agradeço ao pequeno, mas digo a
ele que não é a única lembrança: eu tenho os livros, as fotos e outros singelos
sinais da presença do pai. E mais importante que isso tudo: mesmo que a escova,
os livros, as fotos e todos os sinais se percam, eu terei o pai sempre comigo,
nos meus passos, nos meus sentidos, no meu pensamento.
O pequeno me sorri compreendendo.
E enquanto passeio com os dedos
pelos fios grossos do seu cabelo cheio, percebo que a velha escova de madeira
do pai ainda irá domar muitas outras manhãs.
E todos os nós do dia se
desatarão.
Ilustração de Maria Luziano - cedida
pelo Jornal de Piracicaba
Publicada no Jornal de Piracicaba
em 9 de abril de 2017
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