sexta-feira, 3 de novembro de 2017

Eucaliptos e bolachas

(caio silveira ramos)

De repente eu estava na 5ª série do Colégio Luiz de Queiroz.
Acordei vindo de um sonho bom: cinco anos, do pré-primário à 4ª série, em que as professoras amadas só faltavam me carregar no colo.  Não que as novas professoras e professores me negassem a acolhida. Mas a escola era outra, os colegas eram novos e a partir daquele momento cada matéria teria um professor diferente. E às vezes mais que um.
Da escola antiga só veio comigo o Paulo Henrique Ferreira.  Mas o Paulinho desde pequeno já era descolado e não teve problemas em se adaptar. Já eu era tímido, quietinho e encabulado. E agora teria meu pai como professor de Língua Portuguesa.
Isso logicamente era um privilégio: o professor Algemiro Coelho Ramos era um mestre fabuloso. Muitas e muitas vezes eu era parado na rua por algum aluno que agradecia pelos profundos ensinamentos que recebera de meu pai, não só de Língua Portuguesa, mas de dignidade, honestidade e de amor pelo conhecimento. Alunos, principalmente da escola pública, que ele, por meio das aulas ou de simples conversas nos intervalos, nas ruas e mesmo em nossa casa, conseguira arrancar do limbo da exclusão e do abandono, lhes ofertando oportunidades, amor-próprio e uma vida mais digna.
Mas ser apontado como “o filho do mestre” não é coisa fácil. Mesmo que ali no colégio eu procurasse encará-lo “apenas” como professor e não como pai (e ele também, para afastar qualquer ideia de privilégio, não me tratasse como filho, embora, no fundo, tomasse como filhos todos os seus alunos), no fundo, imaginava o seguinte: se me saísse bem, alguém diria “Ah! Filho de professor deve até receber as questões da prova antes!”.  Mas se fosse mal, esse mesmo alguém poderia dizer: “Caramba! Filho de professor indo mal? Que vergonha...”.  Então, além de ter que me comportar, ser e parecer honesto, eu tinha uma responsabilidade extra: me esforçar não apenas no estudo da Língua Portuguesa, mas também no das outras matérias.
De manhãzinha, o famoso bosque de eucaliptos da escola estava coberto pela neblina fria e o cheiro das árvores se espalhava pelo colégio.  Tendo meu pai que dar aulas em outra escola ainda de manhã, os dois primeiros horários no colégio eram dele. Daí porque a Língua Portuguesa passou a ter pra mim o aroma de eucalipto.  E nas redações das terças-feiras os meus encontros amorosos com as ideias (“mais que gramática, o importante é o conteúdo”, dizia sempre aquele meu professor de Português), sujeitos, predicados, orações e verbos se deparavam sempre com a minha alma já perfumada.
Por outro lado, as duas últimas aulas eram de Matemática, com o professor Douglas Simões, justamente quando a fábrica de bolachas vizinha ao colégio liberava todos os seus cheiros numa dança que misturava maisena, infinitude dos números, leite e fome antes do almoço.  De qualquer forma, não sei se foi a entrada na pré-adolescência ou a mudança de escola (ou até mesmo a saudade do colo das antigas professoras), mas pela primeira vez na minha vida escolar me estranhei com elementos que sempre tinham se mostrado tão amigáveis. E me vi um tanto perdido entre chaves, colchetes e parêntesis.
Assim, quando o professor de Matemática se virava de repente para classe e exclamava “arranquem uma folha, ponham nome, número, série e data”, anunciando mais uma prova surpresa, eu sentia um terrível frio na espinha e me vinha a certeza de que o cheiro de bolacha misturado ao do eucalipto iria me embrulhar o estômago vazio.
Mais que isso: eu começava a perceber que a vida não seria tão fácil quanto imaginava que fosse.

***

De repente eu estava na 5ª série do Colégio Luiz de Queiroz.
De repente eu estava longe dos meus amigos Rogério Nakamura, Nando Boscariol, Rogério Canale, Mauricio Roque, Alexandre Vale e tantos outros.
Mas de repente também, descobri que não estava sozinho: para afastar qualquer abandono, no colégio novo rapidamente apareceram André Komatsu, Renato Ferracciu e Marcelo Pedroso, que me estenderam a mão e deixaram suas casas e quintais sempre abertos para mim.
Naquela escola também me esperavam mentes desafiadoras que logo, logo foram se achegando: as inteligências de Caroline Kageyama, Ana Helena Petrin e Eliana Veras matavam a saudade das minhas antigas colegas do Sud Mennucci, Ana Paula, Rosiede, Luciane, Luciana, Graziela, Fernanda e outras meninas brilhantes que tanto domavam os segredos dos números quanto eram capazes de contar para a classe a história inteira de Rumpelstiltskin. 
Entre os meninos do colégio também havia amigos novos para instigar o espírito: Gunnar, com sua facilidade espantosa com a Matemática e todas as demais matérias: os olhos vibrando de curiosidade e da vontade infinita de conhecer cada detalhe do mundo. E Alexandre Paulino, que não só parecia já saber tudo sobre Ciências, História e Língua Portuguesa, como também tinha um estilo próprio até para erguer a mão ao fazer suas perguntas: ele estendia o braço, erguendo somente os dedos indicador e médio. E se estivesse sentado na lateral da sala, ainda apoiava os dedos na parede, o que dava ao gesto um ar ainda mais irônico e desafiador. 
E da 5ª à 7ª série, outras meninas e meninos foram também se aproximando para afastar de vez o meu medo do novo, permitindo que eu me embriagasse sem temores com o cheiro do eucalipto misturado ao da bolacha: Eliane Yamauti, Erica Bozola, Ricardo Ré, Wagner, Ivan, Eric, Otávio, Felipe, Clerton, Luciana, Christian, Valéria, Cláudio Cordeiro, Marco, Mauro, Ana e Gustavo Bettin, Fernando Guena, Berreta, Júlio, Natanael, Hermes, Orlandinho, Elisa, Gleidenis, Clara, Atílio, Ribas e tantos outros. Como não me comover com a alegria e a camaradagem de Eduardo Freire e do querido Fábio Shimabukuro? Ou com o jeito intrépido de Fabiana Santelli, irmã do Ricardo? Ou com a delicada meiguice de Érika Bonatto?

Na 6ª série ainda apareceu a Adriana Juabre, com tal boniteza e ar tão nobre, que fez meu sono se esquecer das manhãs e minha timidez se espreguiçar feliz e distraída pelo canto dos olhos. Mais uma vez pensei que iria me atrapalhar com os números, dessa vez regidos pela Professora Maria Izabel. Mas justamente para não dar vexame (ou para chamar alguma atenção) eu me desdobrei na Matemática e nas redações, tentando desvendar e criar mistérios.
E no final do ano, no último dia de aula, seria a revelação do “amigo secreto”, mas fiquei doente e tive que faltar. E justamente aquela menina com seus longos cabelos encaracolados, tão doce, que poucas vezes eu tivera a chance (ou a coragem) de conversar, tinha me sorteado.  Me deixou de presente uma caixinha do jogo “Super Trunfo” e um bilhete: “o seu silêncio é muito bonito”.
No ano seguinte, nem consegui agradecer: ela mudou de escola e jamais retornou.
E meu silêncio nunca mais foi o mesmo.

***

De repente eu estava na 5ª série do Colégio Luiz de Queiroz.
Certo, certo: na 8ª houve uma revolução: chegaram alunos incríveis vindos de várias escolas, de várias cidades como Iracemápolis, Rio Claro, Capivari e Limeira. Além de novos amigos e ainda mais gente boa chegando de Santa Bárbara d’Oeste e Americana. Mas isso é outra história.
 No 1º Colegial, além de matérias diferentes, matérias “de gente grande” como Física, Química e Biologia, novos alunos vieram de outras escolas de Piracicaba ou de cidades vizinhas, como Cerquilho e Santa Maria da Serra. Ônibus cheios continuaram a chegar de Santa Bárbara e Americana.  Alexandres, mais que dez, todos grandes amigos. Além de outros, com outros nomes, ideias e vontades. Isso sem falar na certeza de que para minha turma tinham vindo as meninas mais bonitas do mundo.  Mas essa também é outra história.
Pois, de repente, eu estava era mesmo na 5ª série do Colégio Luiz de Queiroz, antes ainda de conhecer o talento musical da Eliane Tokeshi.  Eu estava na 5ª série, mais precisamente no primeiro dia de aula. O cheiro de eucalipto. O frio na barriga. 
Tentei me sentar quase na frente para que minha visão pouca não se perdesse na lousa e no medo. Fiquei um pouco atrás de duas meninas, que rapidamente fizeram amizade e passaram a conversar.  Logo fiquei sabendo que se chamavam Claudine Beduschi e Daniela Marquez.
Claudine tinha o cabelo liso e loiro, os olhos claros serenos e muito atentos. Devia ter a minha idade, 10 anos, mas, assim como as outras meninas, parecia muito mais madura.  E não era só maturidade: pelo menos para mim, ainda que pouco tenha conversado com ela, Claudine revelava um jeito protetor que muitas vezes me socorreu.
Naquele começo de escola nova, muita coisa parecia querer me atrapalhar: da saudade à dificuldade de ser filho de professor.  Dos verbos em inglês às operações com números negativos.  Então me vinha um nó na garganta que minha discrição encabulada impedia que qualquer colega percebesse. Menos Claudine, que mesmo sem bisbilhotice ou qualquer outro interesse parecia sempre perceber meu aborrecimento. Os olhos dela sempre estavam por ali, com sua vigilância serena e solidária. E tudo parecia clarear.
Certo dia, após uma prova qualquer, achei que meu desempenho tinha sido desastroso. O recreio já tinha esvaziado a sala e eu disfarçava minha tristeza (e o brio ferido) fingindo arrumar o material dentro da mochila. Foi então que percebi Claudine, em pé, na minha frente. Tentei desenvidraçar os olhos, mas ela foi mais rápida: “não fica triste, não. Eu também não fui muito bem, mas depois a gente recupera”. Agradeci encabulado e quando ela já saía para o intervalo, se virou e, me emprestando seu melhor sorriso, ainda acalentou: “e quer saber? Acho que você não foi tão mal quanto pensa”.  Eu vesti meu rosto com aquele sorriso e o dia se desanuviou inteiro.

Daniela também tinha olhos claros, mas eles eram tecidos de marotagem e ousadia. Desde que entrou na sala, ela danou-se a falar pelos cotovelos, mas com uma graça tão desnorteante que alegrou a sala, os corredores e até o bosque de eucaliptos.  Parecia que, de repente, alguém tinha lançado uma bola de tênis que sapecava nas paredes, no teto, na lousa, no chão, se embaralhava nos ventiladores, saía pela janela e depois voltava, bulindo na cabeça de cada aluno.
Antes mesmo de a aula começar, minha irmã Raquel e sua inseparável amiga Deise, que estavam no 1º Colegial, chegaram até a porta da minha sala: queriam ver se estava tudo bem comigo.  Acenaram com as mãos e os olhos, e eu respondi com um sorriso encabulado, enquanto Daniela já dava para elas um “oi, tudo bem?”. Minha irmã perguntou como se chamava e ela devolveu, desinibida, seu nome completo.
Naquela tarde, em casa, Raquel se disse encantada com minha colega de classe e completou: “ela é pequetita, tão bonitinha, tão engraçadinha, parece uma bonequinha”.
Foi então que percebi por que eu tinha gostado tanto da minha colega: ela parecia uma boneca mesmo, mas para mim, não aquela que minha irmã via.  Ela era outra boneca, minha amiga há tanto tempo. A amiga que me inspirava destemor, atrevimento e a necessidade de liberdade, de contestação, de provocação.  Saída do conforto das minhas leituras, a boneca Emília parecia ter encontrado seu corpo de carne e osso. Daniela tomara a pílula do Doutor Caramujo e tinha até “Marquez” em seu nome.
E envolto em proteção e alegria, percebi que mesmo não sendo a vida tão fácil quanto eu imaginava, ela valia muito a pena.
E eu estava pronto para ela.


Ilustração de Maria Luziano - cedida pelo Jornal de Piracicaba
Publicada no Jornal de Piracicaba em 7 e 21/5 e 3/6/2017

Um comentário:

  1. Caio , tive a honra de conhecer sua família na Escola de Música , tempo da Cultura Artística , onde cresci junto a suas irmãs , Rute e Raquel (acertei ?), depois no Jorge Coury conheci seu pai como Professor ( P maiúsculo !), e , por fim , novamente meu Professor no CLQ , quando abriram o colégio , neste seu citado eucaliptos e bolachas Júpiter .... Caio , soube ,pela internet , que seus pais e uma irmã faleceram , é a vida ! Deixo aqui meu cumprimento a todos vocês , pois eram uma FAMÍLIA exemplar e abençoada , das que muito respeitávamos , isto dentro do mundo da Cultura Artística , onde só havia a elite de Piracicaba ! Recordo agora seu Pai falando numa abertura cultural no Teatro municipal , quando ele foi seu diretor ..... A vida passa , pessoas de valor ficam , são exemplos !!!! Abraço Caio !!! E Parabéns pela sua Família e pelo primor do seu texto !!!!!

    ResponderExcluir

INFINITE-SE: