sexta-feira, 3 de novembro de 2017

Cuidadopaicuidado

(caio silveira ramos)

João Pedro pediu, como pede todos os dias, que eu me deitasse com ele para lermos juntos: precisávamos saber os próximos passos do Bolachão na sua tentativa de desvendar os planos malignos d’“O Gênio do Crime”.  Mas eu tinha trabalhado muito naquela sexta-feira, já era tarde, e disse que teríamos que ajudar o Gordo no dia seguinte, já que, no sábado cedo, duas coisas importantes e inadiáveis nos esperavam: uma compra de Natal e um corte de cabelo:
“Pensei que eram três coisas.”
“Três? Qual é a terceira?”
“Pedir para o tio Carlos se cuidar.”
“Por que ele tem que se cuidar?”
“Porque o pai dele morreu.”
Tio Carlos era o namorado da Dani, tia do João Pedro.  No dia 13 de dezembro, na terça-feira anterior à sexta daquela conversa, de fato, o Carlos tinha perdido seu pai.  Tocado pela preocupação do pequeno, dei-lhe um beijo na testa e resolvi me deitar com ele para lermos nem que fosse só mais uma página do livro do João Carlos Marinho: quem sabe nela seria revelada a identidade do fabricante das figurinhas clandestinas?
Com o pequeno já dormindo, resolvi caminhar um pouco no seu pensamento. E de repente me dei conta que, além do zelo para com o tio, talvez ele se preocupasse também comigo.
Dia 13 de dezembro era também a data de nascimento do Vô Miro. João Pedro sabia disso e sentia a ausência daquele avô que tinha partido sem conhecê-lo.  E mais: percorrendo minhas andanças, minhas dores escondidas ou reveladas, ele entendia (e também sentia) a falta que aquele pai fazia para o seu próprio pai.  E ele tinha razão.
Mas talvez João Pedro, muito justamente, pensasse em si próprio: a perspectiva da dor da perda, da perda do pai, da falta do pai incomodavam o menino também: era preciso que seu pai se cuidasse da dor de uma ausência (e também de outras dores) para que pudesse cuidar dele.  Para que talvez ele, o filho, não precisasse se cuidar tanto por tantas perdas e dores.
E abraçados nos cuidados recíprocos, adormecemos os dois.
E nos esquecemos um pouco de todas as dores do mundo.

Ilustração de Maria Luziano - cedida pelo Jornal de Piracicaba
Publicada no Jornal de Piracicaba em 29 de janeiro de 2017



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