sexta-feira, 3 de novembro de 2017

Chocolate afetivo

(caio silveira ramos)


Meu pai resolveu fazer um curso em Campinas aos sábados. Acho que era algo relacionado a uma de suas paixões, a Linguística.  Mas saía tão cedo de casa para ir para a rodoviária que, quando eu acordava, ele já tinha partido.
No final do dia, meu pai chegava cansado, mas profundamente feliz.  Ria, contava histórias, enquanto mergulhava um pedaço de pão com um pouco de margarina ou mel na sua xícara de café com leite.
Mas antes, bem antes, assim que eu abria a porta atendendo ao seu famoso assobio, ele me dava uma caixinha de cigarrinhos de chocolate. Ou um tubo de papelão (azul ou vermelho, dependendo da marca), com tampa de plástico, cheio até a boca de pastilhas (também de chocolate) embaladas cada uma em papel alumínio.  Eu dividia os chocolates com minhas irmãs e até guardava alguma coisa para comer mais tarde. E sobrava o tubo que servia para armazenar pequenas coisas. Ou, arrancados o fundo e a tampa, aquele canudo de papelão ainda podia se transformar numa bela luneta pra ver as crateras do lado oculto da lua.
Eu pulava de felicidade: além do chocolate recebido e do próprio tubo de papelão que viraria um brinquedo, me enchia de orgulho e de importância saber que meu pai tinha viajado até Campinas, feito seu curso e, ainda assim, conseguira tempo para pensar em mim durante o dia. A ponto de me trazer uma lembrança de tão longe.
Mas lá pelos meus doze, treze anos, num almoço de domingo, quando recordei saudoso os tubos de pastilhas de chocolate e a alegria sentida ao receber presentes trazido lá de Campinas, meu pai estranhou:
“De Campinas? Não... Eu comprava na “Bomboniere” aqui pertinho de casa, quando voltava a pé da rodoviária no final do dia...”
“Da “Bomboniere” aqui da rua XV? Mas eu tinha certeza que o senhor se lembrava de mim lá em Campinas...”
“Eu lembrava, mas o chocolate era daqui. Tem alguma diferença? O chocolate não tinha o mesmo gosto?”
“Tinha, mas... Sei lá...”
Eu conhecia muito bem a “Bomboniere” da rua XV de Novembro (pouco abaixo da esquina com a José Pinto de Almeida) e que ficava bem perto da nossa casa: ela era pequena, mas para mim, mais encantada que a Fantástica Fábrica de Chocolate do Sr. Wonka. Não só pelos doces, mas também porque tinha no alto um balcão ondulado, que eu não sabia aonde ia dar e o que escondia. Mesmo ali, no piso inferior, tudo era uma festa para os olhos e para a boca: prateleiras preenchidas por cubos de vidro repletos de balas, chicletes, dadinhos de amendoim, bombons e chocolates. Espetados em tabuleiros de madeira, pirulitos grandes, embalados em papel colorido estampado com caretas engraçadas, ou aqueles pequenos, retangulares, “do Zorro”. E a loja tinha muito mais: pacotinhos de balas de goma (que meu pai tanto gostava), bonecos de plástico de super-heróis, com tampinhas de plástico na cabeça, recheados de dezenas de bolinhas coloridas e doces. Frascos de plástico transparente (daqueles que precisava cortar a ponta com tesoura para tomar o suco doce e colorido que vinha dentro) em forma de revólver ou carrinho. Latinhas ovaladas cheias de balas...  Isso tudo sem contar as caixas de papelão, cada uma com sua tampa de vidro quadrada com moldura de madeira, onde ficavam os salgadinhos vendidos a granel. Ah, e o baleiro grande e giratório, com balas Soft, Kids e aquelas Kleps que eram vendidas em fitas? E os balcõezinhos com dropes, Mentex, chocolates das mais variadas marcas e bonecos da Disney, que esticando o pescoço, guardavam pastilhas “Pez”? E o ovo de chocolate que vinha numa caixa azul que minha mãe comprava para meu pai na Páscoa?
Pois era dali, justamente dali, pertinho de casa, que meu pai trazia os cigarrinhos ou as pastilhas de chocolate. De lá vinham os aguardados tubos de papelão que viravam lunetas.
Às vezes, em nossas conversas, eu fingia uma falsa e exagerada decepção e meu pai ria, me perguntando se eu preferia que ele não tivesse trazido os chocolates. E eu, risonha e dramaticamente, dizia que seria melhor o amargo da verdade que o gosto doce da mentira. E ríamos os dois.
Preciso de um tubo de papelão daqueles. Pode ser azul, vermelho, da marca que for. Não são necessárias nem as pastilhas de chocolate embaladas em papel alumínio. Preciso só do tubo, para retirar a tampa de plástico e o fundo de papelão. Preciso daquela luneta. Ir para janela do escritório e vasculhar aquele passado. Ver o pai chegando da rodoviária carregando seu cansaço.  Trazendo seus livros, seus cadernos e quem sabe o chocolate comprado na “Bomboniere” a poucos metros da nossa casa.
Preciso daquela luneta fantástica com cheiro de chocolate.
E a visão do riso inconfundível do pai.

Ilustração de Maria Luziano - cedida pela autora
Publicado no Jornal de Piracicaba em 12/11/2017

Um comentário:

  1. Tentei seu e-mail mas o carteiro já não acha mais o endereço certo. O blog não se mudou, graças a Deus! =) mtos beijos cheios de saudade

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