(caio silveira
ramos)
Meu pai resolveu fazer um curso
em Campinas aos sábados. Acho que era algo relacionado a uma de suas paixões, a
Linguística. Mas saía tão cedo de casa
para ir para a rodoviária que, quando eu acordava, ele já tinha partido.
No final do dia, meu pai chegava
cansado, mas profundamente feliz. Ria,
contava histórias, enquanto mergulhava um pedaço de pão com um pouco de
margarina ou mel na sua xícara de café com leite.
Mas antes, bem antes, assim que
eu abria a porta atendendo ao seu famoso assobio, ele me dava uma caixinha de
cigarrinhos de chocolate. Ou um tubo de papelão (azul ou vermelho, dependendo
da marca), com tampa de plástico, cheio até a boca de pastilhas (também de
chocolate) embaladas cada uma em papel alumínio. Eu dividia os chocolates com minhas irmãs e
até guardava alguma coisa para comer mais tarde. E sobrava o tubo que servia
para armazenar pequenas coisas. Ou, arrancados o fundo e a tampa, aquele canudo
de papelão ainda podia se transformar numa bela luneta pra ver as crateras do
lado oculto da lua.
Eu pulava de felicidade: além do
chocolate recebido e do próprio tubo de papelão que viraria um brinquedo, me
enchia de orgulho e de importância saber que meu pai tinha viajado até
Campinas, feito seu curso e, ainda assim, conseguira tempo para pensar em mim
durante o dia. A ponto de me trazer uma lembrança de tão longe.
Mas lá pelos meus doze, treze
anos, num almoço de domingo, quando recordei saudoso os tubos de pastilhas de
chocolate e a alegria sentida ao receber presentes trazido lá de Campinas, meu
pai estranhou:
“De Campinas? Não... Eu comprava
na “Bomboniere” aqui pertinho de casa, quando voltava a pé da rodoviária no
final do dia...”
“Da “Bomboniere” aqui da rua XV?
Mas eu tinha certeza que o senhor se lembrava de mim lá em Campinas...”
“Eu lembrava, mas o chocolate era
daqui. Tem alguma diferença? O chocolate não tinha o mesmo gosto?”
“Tinha, mas... Sei lá...”
Eu conhecia muito bem a
“Bomboniere” da rua XV de Novembro (pouco abaixo da esquina com a José Pinto de
Almeida) e que ficava bem perto da nossa casa: ela era pequena, mas para mim,
mais encantada que a Fantástica Fábrica de Chocolate do Sr. Wonka. Não só pelos
doces, mas também porque tinha no alto um balcão ondulado, que eu não sabia
aonde ia dar e o que escondia. Mesmo ali, no piso inferior, tudo era uma festa
para os olhos e para a boca: prateleiras preenchidas por cubos de vidro
repletos de balas, chicletes, dadinhos de amendoim, bombons e chocolates.
Espetados em tabuleiros de madeira, pirulitos grandes, embalados em papel
colorido estampado com caretas engraçadas, ou aqueles pequenos, retangulares,
“do Zorro”. E a loja tinha muito mais: pacotinhos de balas de goma (que meu pai
tanto gostava), bonecos de plástico de super-heróis, com tampinhas de plástico
na cabeça, recheados de dezenas de bolinhas coloridas e doces. Frascos de
plástico transparente (daqueles que precisava cortar a ponta com tesoura para
tomar o suco doce e colorido que vinha dentro) em forma de revólver ou
carrinho. Latinhas ovaladas cheias de balas...
Isso tudo sem contar as caixas de papelão, cada uma com sua tampa de
vidro quadrada com moldura de madeira, onde ficavam os salgadinhos vendidos a
granel. Ah, e o baleiro grande e giratório, com balas Soft, Kids e aquelas
Kleps que eram vendidas em fitas? E os balcõezinhos com dropes, Mentex,
chocolates das mais variadas marcas e bonecos da Disney, que esticando o
pescoço, guardavam pastilhas “Pez”? E o ovo de chocolate que vinha numa caixa
azul que minha mãe comprava para meu pai na Páscoa?
Pois era dali, justamente dali,
pertinho de casa, que meu pai trazia os cigarrinhos ou as pastilhas de
chocolate. De lá vinham os aguardados tubos de papelão que viravam lunetas.
Às vezes, em nossas conversas, eu
fingia uma falsa e exagerada decepção e meu pai ria, me perguntando se eu
preferia que ele não tivesse trazido os chocolates. E eu, risonha e
dramaticamente, dizia que seria melhor o amargo da verdade que o gosto doce da
mentira. E ríamos os dois.
Preciso de um tubo de papelão
daqueles. Pode ser azul, vermelho, da marca que for. Não são necessárias nem as
pastilhas de chocolate embaladas em papel alumínio. Preciso só do tubo, para
retirar a tampa de plástico e o fundo de papelão. Preciso daquela luneta. Ir
para janela do escritório e vasculhar aquele passado. Ver o pai chegando da
rodoviária carregando seu cansaço.
Trazendo seus livros, seus cadernos e quem sabe o chocolate comprado na
“Bomboniere” a poucos metros da nossa casa.
Preciso daquela luneta fantástica
com cheiro de chocolate.
E a visão do riso inconfundível
do pai.
Ilustração de Maria Luziano - cedida pela autora
Publicado no Jornal de Piracicaba em 12/11/2017
Tentei seu e-mail mas o carteiro já não acha mais o endereço certo. O blog não se mudou, graças a Deus! =) mtos beijos cheios de saudade
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