(caio silveira
ramos)
De 1982
a 1988, fui aluno do Professor Castorino Telles de Souza. E durante todos esses anos, do ginásio ao
colegial, ele me ensinou Ciências, Biologia e até Matemática, provando, ao lado
da brilhante aluna Luciana Ducatti, que o Teorema de Pitágoras poderia ser
corretamente demonstrado com lápis, papel e... tesoura e cola. Mas isso é outra história. Como também é outra história lembrar que o
irmão do Professor Telles, o Mestre Roberto, chegou a me dar algumas aulas de
xadrez na quinta série, mesmo que eu não tivesse nem a metade do talento que
meu filho de oito anos tem diante de um tabuleiro.
O
Professor Telles sempre foi de opiniões fortes e francas e, por vezes, causou
alguma controvérsia. Eu mesmo devo ter discordado dele algumas voltas, mas isso
faz tanto tempo que já nem me lembro em quais assuntos. E provavelmente eu era
muito novo para ter alguma razão.
No
primeiro ano do Telles como meu professor de Ciências, a meninada não entrava
em polêmicas com ele. Pelo contrário. No intervalo, antes das suas aulas, as
crianças enchiam a lousa com desenhos engraçados que ele, antes de iniciar a
matéria, ia apagando um por um até escolher o favorito do dia. E o mundo ria com infinitos “tellesfones”,
“tellesvisões”, “tellesféricos”, “tellescópios”, todos os objetos devidamente
barbados, calvos e munidos dos indefectíveis óculos de aros bem redondos. Acho que toda classe desenhava, menos eu:
mesmo que tivesse milhões de ideias “tellúricas”, era tão tímido que se um
desenho meu fosse escolhido, nunca teria coragem de me revelar.
Entre uma lição e outra, ele - além de tirar
do bolso do guarda-pó curto uma caixinha com cravos da índia para ajudá-lo a
parar de fumar – arrancava da cachola algumas frases e ideias curiosas. Eu achava deliciosa sua definição para “oô”:
“expressão caipiracicabana de espanto e descrédito”, tudo isso dito sem
economizar na pronúncia bem carregada do “an" (de “espanto”), de todas as
vogais (principalmente dos “es”) e claro, de todos os “erres” a que tinha
direito. Achava saborosas suas frases
que começavam com “quem nunca foi criança que...” e terminavam com algo como “transformou a
bola furada em capacete” ou “fez máquina fotográfica de uma caixinha de
fósforos”. Os hinos mais famosos do Brasil para ele eram os “do Corinthians (o
que eu discordava), o ‘Virundum’ e o de Piracicaba, porque é quase uma moda de
viola”. “Para Casa” virava “Prular”. E a
representação gráfica, sacada por ele e pelo Professor Zé Arthur, de uma árvore
com dois galhos – que explicava espertamente a evolução dos protozoários até o
homem – era jocosamente apelidada de “Chifre do Zé”.
Mas
ele também falava sério. E muito: ficava furioso se alguém arrancava
displicentemente uma folha do caderno só porque talvez houvesse um erro
simples. Dizia que seu pai lutara com dificuldade para educar os filhos. Filhos
que, muitas vezes, tiveram que escrever em papel de embrulhar pão para fazer
lições e estudos.
Uma
das suas lições mais preciosas foi aquela que nos ensinou os mistérios da
palavra mágica “capacidade”. Nas provas
e nas tarefas, ele nos segredou que a tal palavra poderia ser usada para
explicar incontáveis fenômenos da Ciência. Se acaso se pretendesse definir
“fotossíntese”, lá viria a magia: “é a capacidade que os vegetais têm de
etc” . Porém, mais do que isso: ele
nos fez refletir sobre o sentido de nossas próprias respostas em todos os
campos de conhecimento. Mesmo sem usar palavras mágicas, ao sermos indagados
sobre a definição de algo, deveríamos responder com objetividade e clareza, e
não com vagos “é quando” ou “é, por exemplo, (...)”.
Muito
além das Ciências, ele nos ajudou a colocar as ideias em ordem.
A
pensar sobre o sublime ato de pensar.
***
Talvez
nenhuma geração tenha sido tão psicologicamente afetada com o surgimento da
AIDS quanto a minha. Estávamos a um pé da adolescência quando as primeiras
notícias sobre uma terrível doença que guardava estreita relação com o sexo
começaram a se espalhar pelos nossos olhos e ouvidos. Nem bem começávamos a sonhar, nem bem
iniciávamos nossa tentativa de entendimento sobre o que talvez fosse o sexo e o
mundo, já nos amedrontava a morte certa, o preconceito e a segregação. Parecia que quando chegara nossa vez,
seríamos tolhidos da possibilidade do desejo.
Foi
então que o Professor Telles resolveu fazer, uma vez por mês, uma roda
(literalmente: as carteiras eram arrumadas formando um grande círculo), que
ele, inspirado pelo título do filme de Woody Allen, chamava de “Tudo que você
sempre quis saber sobre sexo (mas tinha medo de perguntar)”. Para ninguém ficar constrangido ao expor suas
dúvidas, cada aluna ou aluno escrevia sua questão num pedaço de papel que,
depois de dobrado, era colocado num saco. Então, o Professor Telles ia
retirando nossos medos, dúvidas e angústias e respondendo um a um com leveza e
sem meias verdades.
E
vieram outras lições: na sexta série foi organizada uma excursão ao Zoológico
de São Paulo. Uma das propostas da viagem seria observar as placas informativas
colocadas em frente às moradas dos animais para ajudarmos a aprimorar os dados
dos bichos do Zoológico de Piracicaba.
Me lembro que levei um caderninho e anotei incansavelmente as
características de cada animal e as informações relevantes. Mas o que muito me chamou a atenção foi uma
conversa dentro do ônibus que, por mais que eu tenha me esforçado, não consegui
não ouvir.
Na
viagem de ida para São Paulo, sentados nos bancos atrás do meu, vinham o
Professor Telles e a professora de inglês “Teacher” Elisabeth Nocit. Acho que o passeio até a Capital reavivou a
memória e a saudade dele, que deu para contar entusiasmado, à colega, o período
em que viveu em São Paulo quando ainda era estudante. Lá pelas tantas, lembrou do lugar em que
morava: na minha cabeça de criança criou-se um prédio decadente no centro da
cidade, recheado de figuras interessantes e misteriosas: malandros, travestis,
prostitutas, excluídos de todos os tipos e tamanhos. Eu não entendia muito bem as histórias, mas
aquelas pessoas tão cheias de humanidade se criaram em mim e até hoje tecem
muitas das minhas histórias.
Nas
aulas, Telles nos convidava a experiências, como aquela que revelou o tipo
sanguíneo de cada aluno: trouxemos agulhas descartáveis e ele foi passando de
carteira em carteira, fazendo delicados furos nos nossos dedos para que
brotassem gotas de sangue que eram pingadas numa lâmina de vidro. O professor
colocou seus reagentes e tcharam!, nosso sangue se mostrou com todas as suas
letras e sinais.
Das
lições de Ciências e Biologia, as que mais grudaram em mim foram aquelas que
mostravam os ciclos de doenças como a de Chagas, Esquistossomose, Cisticercose
Cerebral, Leishmaniose, Malária, Febre Amarela, Dengue e tantas outras. Com essas lições – inclusive aquela que me
revelou o sentido da palavra “profilaxia” - eu
abri ainda mais meus olhos para as visões que meus pais me ofertavam já em
casa: as de que eu vivia em um mundo que não se preocupava em investir em
pesquisa para encontrar a cura de doenças que afetavam os mais pobres. Que eu
nascera em um país repleto de desigualdades e por vezes cruel e desatento.
Um país onde muitos não tinham
casa, água ou condições sanitárias mínimas para se ter uma vida digna.
Um país em que tantos não tinham
sequer o direito a professores que os ajudassem a enxergar a vida.
Ilustração
de Maria Luziano - cedida pelo Jornal de Piracicaba
Publicada no Jornal de Piracicaba em 12 e 26/3/2017
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