sexta-feira, 3 de novembro de 2017

Castorino e a capacidade

(caio silveira ramos)


De 1982 a 1988, fui aluno do Professor Castorino Telles de Souza.   E durante todos esses anos, do ginásio ao colegial, ele me ensinou Ciências, Biologia e até Matemática, provando, ao lado da brilhante aluna Luciana Ducatti, que o Teorema de Pitágoras poderia ser corretamente demonstrado com lápis, papel e... tesoura e cola.   Mas isso é outra história.  Como também é outra história lembrar que o irmão do Professor Telles, o Mestre Roberto, chegou a me dar algumas aulas de xadrez na quinta série, mesmo que eu não tivesse nem a metade do talento que meu filho de oito anos tem diante de um tabuleiro.
O Professor Telles sempre foi de opiniões fortes e francas e, por vezes, causou alguma controvérsia. Eu mesmo devo ter discordado dele algumas voltas, mas isso faz tanto tempo que já nem me lembro em quais assuntos. E provavelmente eu era muito novo para ter alguma razão.
No primeiro ano do Telles como meu professor de Ciências, a meninada não entrava em polêmicas com ele. Pelo contrário. No intervalo, antes das suas aulas, as crianças enchiam a lousa com desenhos engraçados que ele, antes de iniciar a matéria, ia apagando um por um até escolher o favorito do dia.  E o mundo ria com infinitos “tellesfones”, “tellesvisões”, “tellesféricos”, “tellescópios”, todos os objetos devidamente barbados, calvos e munidos dos indefectíveis óculos de aros bem redondos.  Acho que toda classe desenhava, menos eu: mesmo que tivesse milhões de ideias “tellúricas”, era tão tímido que se um desenho meu fosse escolhido, nunca teria coragem de me revelar.
    Entre uma lição e outra, ele - além de tirar do bolso do guarda-pó curto uma caixinha com cravos da índia para ajudá-lo a parar de fumar – arrancava da cachola algumas frases e ideias curiosas.  Eu achava deliciosa sua definição para “oô”: “expressão caipiracicabana de espanto e descrédito”, tudo isso dito sem economizar na pronúncia bem carregada do “an" (de “espanto”), de todas as vogais (principalmente dos “es”) e claro, de todos os “erres” a que tinha direito.  Achava saborosas suas frases que começavam com “quem nunca foi criança que...”  e terminavam com algo como “transformou a bola furada em capacete” ou “fez máquina fotográfica de uma caixinha de fósforos”. Os hinos mais famosos do Brasil para ele eram os “do Corinthians (o que eu discordava), o ‘Virundum’ e o de Piracicaba, porque é quase uma moda de viola”. “Para Casa” virava “Prular”.  E a representação gráfica, sacada por ele e pelo Professor Zé Arthur, de uma árvore com dois galhos – que explicava espertamente a evolução dos protozoários até o homem – era jocosamente apelidada de “Chifre do Zé”.
Mas ele também falava sério. E muito: ficava furioso se alguém arrancava displicentemente uma folha do caderno só porque talvez houvesse um erro simples. Dizia que seu pai lutara com dificuldade para educar os filhos. Filhos que, muitas vezes, tiveram que escrever em papel de embrulhar pão para fazer lições e estudos.
Uma das suas lições mais preciosas foi aquela que nos ensinou os mistérios da palavra mágica “capacidade”.  Nas provas e nas tarefas, ele nos segredou que a tal palavra poderia ser usada para explicar incontáveis fenômenos da Ciência. Se acaso se pretendesse definir “fotossíntese”, lá viria a magia: “é a capacidade que os vegetais têm de etc” .  Porém, mais do que isso: ele nos fez refletir sobre o sentido de nossas próprias respostas em todos os campos de conhecimento. Mesmo sem usar palavras mágicas, ao sermos indagados sobre a definição de algo, deveríamos responder com objetividade e clareza, e não com vagos “é quando” ou “é, por exemplo, (...)”.
Muito além das Ciências, ele nos ajudou a colocar as ideias em ordem. 
A pensar sobre o sublime ato de pensar.

***


Talvez nenhuma geração tenha sido tão psicologicamente afetada com o surgimento da AIDS quanto a minha. Estávamos a um pé da adolescência quando as primeiras notícias sobre uma terrível doença que guardava estreita relação com o sexo começaram a se espalhar pelos nossos olhos e ouvidos.  Nem bem começávamos a sonhar, nem bem iniciávamos nossa tentativa de entendimento sobre o que talvez fosse o sexo e o mundo, já nos amedrontava a morte certa, o preconceito e a segregação.  Parecia que quando chegara nossa vez, seríamos tolhidos da possibilidade do desejo.
Foi então que o Professor Telles resolveu fazer, uma vez por mês, uma roda (literalmente: as carteiras eram arrumadas formando um grande círculo), que ele, inspirado pelo título do filme de Woody Allen, chamava de “Tudo que você sempre quis saber sobre sexo (mas tinha medo de perguntar)”.  Para ninguém ficar constrangido ao expor suas dúvidas, cada aluna ou aluno escrevia sua questão num pedaço de papel que, depois de dobrado, era colocado num saco. Então, o Professor Telles ia retirando nossos medos, dúvidas e angústias e respondendo um a um com leveza e sem meias verdades.
E vieram outras lições: na sexta série foi organizada uma excursão ao Zoológico de São Paulo. Uma das propostas da viagem seria observar as placas informativas colocadas em frente às moradas dos animais para ajudarmos a aprimorar os dados dos bichos do Zoológico de Piracicaba.  Me lembro que levei um caderninho e anotei incansavelmente as características de cada animal e as informações relevantes.  Mas o que muito me chamou a atenção foi uma conversa dentro do ônibus que, por mais que eu tenha me esforçado, não consegui não ouvir.
Na viagem de ida para São Paulo, sentados nos bancos atrás do meu, vinham o Professor Telles e a professora de inglês “Teacher” Elisabeth Nocit.  Acho que o passeio até a Capital reavivou a memória e a saudade dele, que deu para contar entusiasmado, à colega, o período em que viveu em São Paulo quando ainda era estudante.  Lá pelas tantas, lembrou do lugar em que morava: na minha cabeça de criança criou-se um prédio decadente no centro da cidade, recheado de figuras interessantes e misteriosas: malandros, travestis, prostitutas, excluídos de todos os tipos e tamanhos.  Eu não entendia muito bem as histórias, mas aquelas pessoas tão cheias de humanidade se criaram em mim e até hoje tecem muitas das minhas histórias.
Nas aulas, Telles nos convidava a experiências, como aquela que revelou o tipo sanguíneo de cada aluno: trouxemos agulhas descartáveis e ele foi passando de carteira em carteira, fazendo delicados furos nos nossos dedos para que brotassem gotas de sangue que eram pingadas numa lâmina de vidro. O professor colocou seus reagentes e tcharam!, nosso sangue se mostrou com todas as suas letras e sinais.
Das lições de Ciências e Biologia, as que mais grudaram em mim foram aquelas que mostravam os ciclos de doenças como a de Chagas, Esquistossomose, Cisticercose Cerebral, Leishmaniose, Malária, Febre Amarela, Dengue e tantas outras.  Com essas lições – inclusive aquela que me revelou o sentido da palavra “profilaxia”  -  eu abri ainda mais meus olhos para as visões que meus pais me ofertavam já em casa: as de que eu vivia em um mundo que não se preocupava em investir em pesquisa para encontrar a cura de doenças que afetavam os mais pobres. Que eu nascera em um país repleto de desigualdades e por vezes cruel e desatento. 
Um país onde muitos não tinham casa, água ou condições sanitárias mínimas para se ter uma vida digna.
Um país em que tantos não tinham sequer o direito a professores que os ajudassem a enxergar a vida.
                                               


Ilustração de Maria Luziano - cedida pelo Jornal de Piracicaba
               Publicada no Jornal de Piracicaba em 12 e 26/3/2017

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