sexta-feira, 3 de novembro de 2017

Abandonos

(caio silveira ramos)

Numa tarde de sábado qualquer, fui comer um lanche na padaria com o pequeno.
A tal padaria é daquelas grandes, com vasto balcão para venda dos mais diversos pães e doces.  No lado direito de quem entra, há uma bancada em forma de “u” onde são servidos sucos e refeições rápidas, um bufê com sorvetes “da casa” e um outro com comidas “por quilo”. Por fim, próximas às grandes vidraças, muitas mesas com quatro ou duas cadeiras onde os clientes podem se alimentar calmamente.  E foi nesse setor que nós nos sentamos: ele pediu um misto quente. Eu, um café acompanhado por um pão de queijo na chapa.
O garçom já tinha anotado nosso pedido, quando me lembrei que o pequeno gosta de um suco que fica na geladeira do outro lado do estabelecimento. Avisei que iria buscar seu suco e, tranquilo por conhecer quase todos os funcionários da padaria, o deixei sentadinho esperando seu misto.
Apanhei o suco e me lembrei que Patricia, um pouco indisposta naquele dia, tinha me pedido para levar alguns pãezinhos para casa. Como a fila era pequena e o cheiro do pão avisava que ele tinha acabado de sair do forno, resolvi esperar a minha vez. Só que um pouco antes de chegar ao balcão, uma velhinha muito simpática resolveu puxar conversa com o padeiro, o que fez a compra demorar um tantinho a mais.
Com o pão fumegando no saquinho e o suco do João nas mãos, contornei o bufê e fui em direção a nossa mesa. Chegando perto, percebi que o pequeno, ainda que sentado, estava virado para trás, com certo ar apreensivo.
“Tudo bem, filhinho? Seu misto já chegou... Não precisava ter me esperado. Frio, o sanduíche não fica tão gostoso.”
“Você demorou, papai...”
“Me lembrei que precisava comprar pão pra sua mãe e resolvi não deixar pra saída: vai que a fila aumente...”
“Fiquei pensando, você indo embora, me deixando aqui...Aí chegando em casa, você e mamãe comemorando...”
Então, durante meio segundo, sensações tão opostas se achegaram em mim misturadas, reviradas, sobrepostas: uma vontade de gargalhar do absurdo. Gargalhar por me deparar com o pequeno imaginando uma situação impossível diante de um amor absoluto. Eu queria rir, rir da graça daquela fala inocente, das cenas descabidas em que eu tentava me ver em seu pensamento. Como, como podia sequer passar por sua cabeça que tal disparate pudesse acontecer? Era tudo tão engraçado! Mas de repente, ao mesmo tempo, o riso me escapava e brotava o nó na garganta, a necessidade do choro calado. Pois não tinha, de fato, passado na mente do filho aquilo que para ele não era um disparate? De onde, de onde surgira aquele medo, mais que isso, a ideia irremediável do abandono? De que fato, de que gesto, de que palavra aquela sensação surgira para roubar seu sossego?  E a dor, a dor genuína, sem lágrima, sem grito, cruelmente bordada ainda pela espera infinita?
“De onde você tirou essa ideia maluca? Ah! Tá aqui seu suco...”
Ele repetiu mais ou menos o que já tinha falado: parecia até que a sensação ruim fora esquecida ou perdida no meio do queijo derretido do misto quente:
“Então...ah, sei lá, você indo embora...vocês comemorando...Abre o canudo pra mim, por favor?”
Retirei o canudo de dentro da embalagem plástica que escorregava na sua mão e coloquei dentro da caixinha do suco. Sorri para o jeito todo dele de dizer “por favor” e “obrigado” e provoquei:
“Se passasse mais um tempo e o papai não aparecesse, você iria comer o sanduíche antes de me procurar no outro lado da padaria ou deixaria ele aí?”
“Eu deixaria o sanduíche aqui”.
“E se fosse um “cookie” ou um bolo de chocolate quentinho lá da loja da esquina?”
Ele pegou o suco e, enquanto sugava pelo canudo, olhou para mim. Então, riu, quase se engasgando. Tirou o canudo da boca, engoliu o suco e abriu um sorriso grande, rindo, rindo.
Eu ri também: a alegria estava de volta.
Mas escondido em algum canto sei que dorme um temor desconfiado.
Desconfiado dos abandonos que a vida teimosamente insiste em repetir. 


Ilustração de Maria Luziano - cedida pelo Jornal de Piracicaba
Publicada no Jornal de Piracicaba em 24 de setembro de 2017


Um comentário:

  1. Lindo querido irmão. Abraços mil. André Cardoso (acho que o Pedroca puxou o senso de humor do pai, mas ele ainda não sabe).

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