quinta-feira, 26 de janeiro de 2017

O menino, o mar e os poetas

(caio silveira ramos)

O Colégio São Francisco Xavier do Ipiranga escolheu a obra e a vida do poeta Vinícius de Moraes para desenvolver um projeto de leitura com seus alunos do 2º Ano do Ensino Fundamental.  O projeto culminou com uma apresentação teatral e eu fiquei matutando se não seria melhor terem usado mais músicas do repertório infantil do poeta do que suprimir “trechos incômodos” de algumas de suas obras.  Talvez fosse mais interessante cantar “A pulga”, “A foca”, “Menininha” (todas parcerias com Toquinho) e “São Francisco” (com Paulo Soledade), ou até mesmo obras adultas como “Chega de saudade”, “Se todos fossem iguais a você”, “Garota de Ipanema” (todas com Tom Jobim), “Coisa mais linda” (com Carlos Lyra) “Valsinha” (com Chico Buarque) e “Pela luz dos olhos teus”, que vetar as partes faladas de “Samba da Bênção” (com Baden Powell) – o que fez sair de cena as próprias bênçãos -, e de “Sei lá...a vida tem sempre razão” (com Toquinho) ou retirar as estrofes que enumeram os amores marotos do pequeno bardo de “O poeta aprendiz” (também parceria com Toquinho). 
De qualquer forma, o saldo do projeto foi muito bom, porque fez a meninada voltar para casa conversando sobre os parceiros do Poetinha e cantarolando a parceria com Tom Jobim, “Eu sei que vou te amar”, a com Toquinho e Paulo Soledade, “O pato (pateta)”, e as canções, só de Vinicius e Toquinho, “A Porta” e “Tarde em Itapuã” (com direito até a estrofe em que se argumenta “com doçura com uma cachaça de rolha”). 
Eu, sem saber se a professora tinha explicado o significado de algumas palavras de “O poeta aprendiz”, abri um dicionário com João Pedro e fomos tirando da cartola todos os sentidos de um menino valente e “caprino”. Ou do “bodoque” de um “infante” sadio e “grimpante” com o olhar “verde-gaio”.  E depois rimos gostosamente quando meu pequeno disse que uma coleguinha, ao interpretar “Tarde em Itapuã”, cantava “na Praça caída senti preguiça no corpo” em vez de “na Praça Caymmi senti preguiça no corpo”.  Aproveitei a deixa e perguntei se ele sabia quem era aquele “Caymmi” que dava nome a uma praça.
“Era um cantor, né?”
Era. Mas era tanto mais. Tanto que o verbo devia ser conjugado no presente: Caymmi é.  Mas como explicar isso ao pequeno? Como resumir o mar, o mar tamanho, a uma gota repousando na palma da mão?
Não entanto, Caymmi é mar e é gota.  Preenche os espaços abertos e se abriga nas miudezas. Revela os infinitos e as pequenas coisas.
Então, achei que, melhor que explicar tudo aquilo, seria contar uma história. Uma história que ocorreu noutro dia mesmo para mim. Ou há muito, muito tempo para um menino de oito anos.
Bebê de colo ainda, João pouco chorava. Mas quando chorava, pela proximidade do sono ou quando qualquer outra coisa lhe perturbava o sossego, sua voz ecoava com força. E eu, pai de primeira viagem, inventava mil e um segredos para recolher no meu próprio peito aquilo que eu achava ser dor ou incômodo para uma vida que cabia nos meus braços. 
Um dia, durante um daqueles momentos de choro, depois de andar com os pés no teto e me equilibrar na corda do varal (mas sem o sucesso da trégua), me veio em socorro a voz de Dorival Caymmi. Grave, potente, sonora. Mais sonora que o soluço do Joãozinho. Porém, ela não chegou trazendo o seu famoso “Acalanto”.  Ela saiu de mim em forma de mar. “O mar”:
“O maaaaaar, quando quebra na praiaaa, é boniiiiiiiiito, é boniiiiiiito”.
O pequeno parou imediatamente de chorar e me olhou intrigado. Um olhar profundo com todos os seus veres.
Aproveitei a deixa e, tal qual a gravação Caymmi, modulei a tonalidade:
“O maaaaaar, quando quebra na praiaaa, é boniiiiiiiiito, é boniiiiiiito”.
Aninhado pelo som potente que fazia vibrar meu peito e meu colo, Joãozinho sossegou de vez seu choro. E serenou, serenou. Até que dormiu.
E dali em diante, cada vez que ele chorava, eu me caymmizava todo. E “O mar” desaguava majestoso e sonoro sobre o desassossego do pequeno.
Anos depois, ele acharia graça por ter se deixado hipnotizar tantas vezes pelas ondas de um mar desenhado pelo homem que dava nome à praça da canção de Vinicius de Moraes e Toquinho.  Mas lá atrás, com meu filho ainda no meu colo e já dormindo, eu me lembrava de meu pai e de outra canção daquela dupla. Então, mergulhado em benquerenças, eu sussurrava baixinho para alimentar seus sonhos: “dorme meu pequenininho, dorme que a noite já vem/teu pai está muito sozinho de tanto amor que ele tem”.
E inundado de mar e poesia, eu adormecia também.



Ilustração: Erasmo Spadotto – cedida pelo Jornal de Piracicaba
Publicado no Jornal de Piracicaba em 23/10/2016

Um comentário:

  1. Caio, desculpe-me a invasão, mas pisaste no meu calcanhar. Seus textos (preciso assinar o Jornal de Piracicaba) me estimulam, mesmo que isso seja uma temeridade, dada a excelência com que escreves. Nas últimas semanas retornei ao Buda nagô mais ou menos ao mesmo tempo em que escrevias essa belíssima crônica. Na minha arqueologia de escritório sempre reencontro as coisas que jamais saíram dali, e na medida em que vou retirando os materiais, mais e mais maravilhas surgem. Sargaço Mar, num vinil de 85 patrocinado pela Odebrecht ( por isso a sua desgraça?) com arranjos de Radamés Gnattali... meu Caio, como diria o mestre zenbaiano, a força poética do Dorival, sua obra monumental pode soerguer o país, torná-lo Nação. Está tudo lá, o folclore que se confunde com o próprio compositor (para mim a cantiga de Acalanto sempre foi dele); o universo do trabalho, decente, perigoso, épico; a singeleza que perdemos e não temos com o que repor, enfim, no Dorival temos a base estética e ética para a formação das gerações que virão. Deixo um abraço pro João Pedro e outro pra ti que faz com ele o que eu gostaria de fazer com os filhos dos outros. Do Alexandre que também não gosta do Natal porque não teve o seu nome listado.

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