(caio
silveira ramos)
O Colégio São Francisco Xavier do
Ipiranga escolheu a obra e a vida do poeta Vinícius de Moraes para desenvolver
um projeto de leitura com seus alunos do 2º Ano do Ensino Fundamental. O projeto culminou com uma apresentação
teatral e eu fiquei matutando se não seria melhor terem usado mais músicas do
repertório infantil do poeta do que suprimir “trechos incômodos” de algumas de
suas obras. Talvez fosse mais
interessante cantar “A pulga”, “A foca”, “Menininha” (todas parcerias com
Toquinho) e “São Francisco” (com Paulo Soledade), ou até mesmo obras adultas como
“Chega de saudade”, “Se todos fossem iguais a você”, “Garota de Ipanema” (todas
com Tom Jobim), “Coisa mais linda” (com Carlos Lyra) “Valsinha” (com Chico
Buarque) e “Pela luz dos olhos teus”, que vetar as partes faladas de “Samba da
Bênção” (com Baden Powell) – o que fez sair de cena as próprias bênçãos -, e de
“Sei lá...a vida tem sempre razão” (com Toquinho) ou retirar as estrofes que
enumeram os amores marotos do pequeno bardo de “O poeta aprendiz” (também
parceria com Toquinho).
De qualquer forma, o saldo do
projeto foi muito bom, porque fez a meninada voltar para casa conversando sobre
os parceiros do Poetinha e cantarolando a parceria com Tom Jobim, “Eu sei que
vou te amar”, a com Toquinho e Paulo Soledade, “O pato (pateta)”, e as canções,
só de Vinicius e Toquinho, “A Porta” e “Tarde em Itapuã” (com direito até a
estrofe em que se argumenta “com doçura com uma cachaça de rolha”).
Eu, sem saber se a professora
tinha explicado o significado de algumas palavras de “O poeta aprendiz”, abri
um dicionário com João Pedro e fomos tirando da cartola todos os sentidos de um
menino valente e “caprino”. Ou do
“bodoque” de um “infante” sadio e “grimpante” com o olhar “verde-gaio”. E depois rimos gostosamente quando meu
pequeno disse que uma coleguinha, ao interpretar “Tarde em Itapuã”, cantava “na
Praça caída senti preguiça no corpo” em vez de “na Praça Caymmi senti preguiça
no corpo”. Aproveitei a deixa e
perguntei se ele sabia quem era aquele “Caymmi” que dava nome a uma praça.
“Era um cantor, né?”
Era. Mas era tanto mais. Tanto
que o verbo devia ser conjugado no presente: Caymmi é. Mas como explicar isso ao pequeno? Como
resumir o mar, o mar tamanho, a uma gota repousando na palma da mão?
Não entanto, Caymmi é mar e é
gota. Preenche os espaços abertos e se
abriga nas miudezas. Revela os infinitos e as pequenas coisas.
Então, achei que, melhor que
explicar tudo aquilo, seria contar uma história. Uma história que ocorreu
noutro dia mesmo para mim. Ou há muito, muito tempo para um menino de oito anos.
Bebê de colo ainda, João pouco
chorava. Mas quando chorava, pela proximidade do sono ou quando qualquer outra
coisa lhe perturbava o sossego, sua voz ecoava com força. E eu, pai de primeira
viagem, inventava mil e um segredos para recolher no meu próprio peito aquilo
que eu achava ser dor ou incômodo para uma vida que cabia nos meus braços.
Um dia, durante um daqueles
momentos de choro, depois de andar com os pés no teto e me equilibrar na corda
do varal (mas sem o sucesso da trégua), me veio em socorro a voz de Dorival
Caymmi. Grave, potente, sonora. Mais sonora que o soluço do Joãozinho. Porém,
ela não chegou trazendo o seu famoso “Acalanto”. Ela saiu de mim em forma de mar. “O mar”:
“O maaaaaar, quando quebra na
praiaaa, é boniiiiiiiiito, é boniiiiiiito”.
O pequeno parou imediatamente de
chorar e me olhou intrigado. Um olhar profundo com todos os seus veres.
Aproveitei a deixa e, tal qual a
gravação Caymmi, modulei a tonalidade:
“O maaaaaar, quando quebra na
praiaaa, é boniiiiiiiiito, é boniiiiiiito”.
Aninhado pelo som potente que
fazia vibrar meu peito e meu colo, Joãozinho sossegou de vez seu choro. E
serenou, serenou. Até que dormiu.
E dali em diante, cada vez que
ele chorava, eu me caymmizava todo. E “O mar” desaguava majestoso e sonoro
sobre o desassossego do pequeno.
Anos depois, ele acharia graça
por ter se deixado hipnotizar tantas vezes pelas ondas de um mar desenhado pelo
homem que dava nome à praça da canção de Vinicius de Moraes e Toquinho. Mas lá atrás, com meu filho ainda no meu colo
e já dormindo, eu me lembrava de meu pai e de outra canção daquela dupla.
Então, mergulhado em benquerenças, eu sussurrava baixinho para alimentar seus
sonhos: “dorme meu pequenininho, dorme que a noite já vem/teu pai está muito
sozinho de tanto amor que ele tem”.
E inundado de mar e poesia, eu
adormecia também.
Ilustração: Erasmo Spadotto – cedida pelo Jornal de Piracicaba
Publicado no Jornal de Piracicaba em 23/10/2016
Caio, desculpe-me a invasão, mas pisaste no meu calcanhar. Seus textos (preciso assinar o Jornal de Piracicaba) me estimulam, mesmo que isso seja uma temeridade, dada a excelência com que escreves. Nas últimas semanas retornei ao Buda nagô mais ou menos ao mesmo tempo em que escrevias essa belíssima crônica. Na minha arqueologia de escritório sempre reencontro as coisas que jamais saíram dali, e na medida em que vou retirando os materiais, mais e mais maravilhas surgem. Sargaço Mar, num vinil de 85 patrocinado pela Odebrecht ( por isso a sua desgraça?) com arranjos de Radamés Gnattali... meu Caio, como diria o mestre zenbaiano, a força poética do Dorival, sua obra monumental pode soerguer o país, torná-lo Nação. Está tudo lá, o folclore que se confunde com o próprio compositor (para mim a cantiga de Acalanto sempre foi dele); o universo do trabalho, decente, perigoso, épico; a singeleza que perdemos e não temos com o que repor, enfim, no Dorival temos a base estética e ética para a formação das gerações que virão. Deixo um abraço pro João Pedro e outro pra ti que faz com ele o que eu gostaria de fazer com os filhos dos outros. Do Alexandre que também não gosta do Natal porque não teve o seu nome listado.
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