(caio
silveira ramos)
Maria tem três anos e pouco. A
pele morena e o cabelo escuro (que usa até os ombros) ela ganhou de
Bangladesh. E a fendinha que tem no
arrebito do nariz ela copiou de sua mãe, que é
paulista-pernambucana-italiana-etc-e-o-mundo.
Mas o sorriso, que ela estende
pela rua quando vê a gente lá de longe, é só dela. O olhar espremidinho de alegria, que não traz
o azul da mãe, também é só dela. E os braços abertos, vindo, vindo, para trazer
no abraço profundo aquele sorriso estendido e os olhos espremidinhos, também é
apenas dela.
Pois a diretora da escolinha
chamou a mãe da Maria para uma reunião. E lá foi, toda preocupada, a mãe da
Maria. Com ares graves e sérios, diretora e professora disseram para a mãe da
Maria não incentivar muito a imaginação da pequena, que deveria ser prontamente
introduzida nas realidades do mundo com mais firmeza e menos fantasia.
A mãe da Maria suspirou aliviada,
ficou um tanto constrangida pelo pensamento das duas pedagogas, mas não
retrucou, nem sorriu irônica, pois não é do seu feitio desdenhar de
ninguém. Talvez se ela não tivesse tanta
imaginação e não incentivasse tanto a fantasia da Maria, ela desdenhasse.
Como as duas senhoras não
explicitaram muito bem as situações fantasiosas da Maria, a mãe da Maria tentou
imaginar, embora já suspeitasse, o que tanto sua filha andava matutando para
que a direção da escola praticamente a pintasse voando pelos ares.
Pois ela não contava histórias
para a Maria todos os dias? Não se misturavam na hora de dormir os contos de
Daniel Munduruku com os dos irmãos Grimm? Não era ela mesma quem levava a Maria
a peças de teatro e brincava que ela não era a mamãe, mas o lobo da
Chapeuzinho-Maria, e as duas riam, riam de quase pular de soluço?
Por isso Maria sempre quis o
lobo. E o jacaré. E o jabuti. E a onça. O macaco, o coelho e o Riquete
Topetudo. Mas na escola talvez não conheçam histórias desses personagens e, não
contem a ninguém: suspeito que pensam que tudo deve ser apenas fantasia da
Maria e da mãe da Maria.
Mas a escola toda conhece a
princesa Elsa, da super-produção Frozen,
da Disney. Os vestidos da Elsa. A cabeleira quase prateada de Elsa e sua trança
idem.
E é tão lindo ver todas as
meninas no intervalo cantando “Let it go”. É tão emocionante ver as meninas se
fantasiando de Elsa ou de qualquer outra princesa. Pois essa fantasia pode: essa está na moda.
Na escola, na noite do pijama, nas sextas-feiras, nas brincadeiras no
intervalo, na saída do “jardinzinho”, os adultos se desmancham ao verem suas
meninas incorporarem as mais belas princesas dos desenhos.
E embora cantem “livre estou,
livre estou”, o que fica dos contos de fadas para as crianças não é o enredo
fabuloso, nem o chamado empoderamento feminino que teria vindo com as princesas
Elsa, Valente e a Aurora de “Malévola”, que em seus filmes não encontram mais
em príncipes encantados o amor verdadeiro. O que fica é apenas a fantasia. Mas
não a fantasia da Maria, não a fantasia do sonhar, do encantamento, mas sim, a
fantasia de, literalmente, apenas vestir roupa e cabelo. Essa fantasia é
importante também, mas às vezes se perde na superfície do lago, deixando só a
imagem no espelho.
Mas os “ligados na realidade”
querem mais é a imagem chapada desse espelho sem fundo e se orgulham de suas
meninas metidas debaixo de desengonçadas perucas platinadas de uma Elsa
esvaziada. Ou se gabam de suas pequenas
imitando as coreografas de músicas que tratam de “poderosas” e “recalcadas”,
mas que muitas vezes apenas reduzem meninas e mulheres a velhos estereótipos
machistas. Esse é o “mundo real” onde as palavras “liberdade”, “fantasia” e
“poder” se transformam em sapo e viram meras figuras retóricas.
Maria dança na roda de mãos dadas
com as amiguinhas. Sorri, abraça, pinta, borda e brinca. Assiste ao “Sítio do
Picapau Amarelo” e bate palmas ao ver a Menina do Nariz “Arrebentado”. Os olhos
da Maria são vivos, ligados. A realidade não lhe escapa. O que ela teria
feito? Teria tentado voar do brinquedão
da escola pensando ser a fada Sininho e acabara se estabacando no chão? Teria se frustrado quando o amiguinho beijado
no rosto não virara um sapo-boi? Ou se espantara por ter feito salacadula num
boneco de madeira e ele permanecera apenas um boneco da madeira (porém
falante)?
Depois de muito fuçar, a mãe da
Maria descobriu a “excessiva fantasia”: durante a semana em que ela ficara de
férias, sua filha, quando chegava à porta da escola, não queria entrar: dizia
que lá dentro estava o lobo e que era melhor ficar em casa, cuidando das suas
bonecas. Estranhamente, o lobo sumiu da
escola quando a mãe da Maria voltou a trabalhar.
É que talvez a fantasia da Maria
seja muito poderosa: com um simples passe de mágica ela consegue fazer sumir o
lobo mau.
Ou transformar adultos em
abóboras recheadas de vento.
Ilustração: Erasmo Spadotto – cedida pelo Jornal de Piracicaba
Publicado no Jornal de Piracicaba em 31/7/2016
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