quinta-feira, 26 de janeiro de 2017

A volta do Tigre Negro

(caio silveira ramos)

A cadelinha Nina chegou revirando o mundo. Mudou a disposição das coisas na área de serviço. Fez alguns cômodos da casa fechar suas portas. Espalhou obstáculos feitos de borracha e pano no tapete da sala.  Depois se espreguiçou e ofereceu a barriga manchada de branco para afagos de mil sóis e mãos infinitas.
A moça que trabalha no prédio sentenciou: “ela parece cachorro de pobre. Cachorro de rico é branco, peludo, sem focinho e tem rabo curto. Ela tem focinho grande, pelo rente e rabo comprido. Como ela, e ainda malhadinha assim, marrom, com mancha preta e pata bege, tem um monte na favela”.
Rindo, retruquei: “então a Nina é perfeita pra gente: não somos ricos mesmo!” E lá fui eu, todo feliz, com meu filho, jogar bola com a cachorrinha no meio da sala.
E lá vai ela, feliz também, correr com as orelhas balançando. Nina pula, deita, rola. E balança a cabeça, segurando com os dentes cheios da valentia dos seus dois meses, o cachorrinho de pelúcia Tibúrcio.
Nina parece tão feliz, que a suspeição da faxineira sobre o pedigree mambembe trazido pela criadora se dissolve no primeiro olhar profundo pedindo colo. E a “mini daschund arlequim” se transforma deliciosamente numa “salsichinha malhada”, provavelmente não tão “inha” assim no futuro.  E se seu “padrão raro de pelagem” – com manchas pretas, e focinho e patas cor “tan” –, se revela, na verdade, como o provável resultado de algum cruzamento temerário, apenas duas roladas de 360 graus no chão da sala fazem o prédio desabar de ternura por causa de Nina, a mais bela. Nina, Nininha, Ninoca, Ninotchka. Nina Biscoito. Nina-mel.
Mas existe algo mais naquela cadelinha que provocou a querença instantânea em mim.  Algo além da maciez do pelo malhado, da corrida saltitante pela casa, da delicadeza de mordiscar sem dor a mão que lhe afaga a barriga. 
Olhando uma sequência de fotos em que ela, apoiada no meu ombro, vai serenando tranquilamente os olhos até fechá-los por completo, decifro o sonho que a cadelinha devaneia.  Em algum lugar, lugar perdido entre mim e ela, Nina faz seu chamado, que é também o meu.
E ao longe, eu e ela avistamos quem atende ao nosso pedido.
Destemido e altivo, o Tigre Negro está de volta.

***
O cachorrinho de plástico, que já tinha passado pelas mãos das minhas três irmãs, chegou até mim sem os olhos e as rodinhas. Mas mesmo assim, eu me empertigava todo puxando o brinquedo por um barbante lá no quintal de casa. De tanto verem a cena, quando a Jô anunciou que a cadelinha da sua casa iria dar cria e que eu poderia ficar com um dos filhotes, meus pais decidiram que já era hora de eu ter um cachorro de verdade.
No começo de janeiro de 1979, os filhotes nasceram e ficou combinado que, assim que a nossa família voltasse da viagem de uma semana pra Poços de Caldas, iríamos apanhar o bichinho.  Quando a Jô disse que o cachorrinho tinha o pelo quase todo preto, imediatamente comecei a pensar em nomes.  Depois de muito matutar, anunciei solene: “ele vai se chamar Tigre Negro”.
Alguém ironizou e até me falou alguma coisa, mas na minha cabeça eu e Tigre Negro já enfrentávamos os mais temíveis vilões do Universo. Seríamos uma dupla corajosa e invencível, pronta para combater o mal.
A viagem para Poços foi muito, muito boa, mas confesso que entre os sabonetes artesanais, as fontes luminosas coloridas, o relógio de flores no meio da praça, o café da manhã de hotel, a vista do Cristo, uma cachoeira, um parque infantil e um barquinho de ferro da coleção “Matchbox”, Tigre Negro aparecia voando, me convidando para uma nova missão. Por isso, na mesma tarde em que chegamos cansados da viagem, fui com meu pai e minhas irmãs até a casa da Jô para me encontrar com meu parceiro.
Os filhotes estavam dentro de uma manilha de concreto e, mesmo antes de a mãe da Jô apanhar o bichinho certo e colocá-lo numa caixinha de papelão, eu já tinha reconhecido o temido Tigre Negro.  Que descansava serenamente de olhos fechados.
Em casa, rodeado por panos e crianças, o cachorrinho parecia se acostumar com as novidades. Menos com o nome. Eu chamava baixinho, “vem Tigre Negro, vem”, porém ele parecia não ligar muito. Mas quando minha irmã Ester esfregou os dedos com um pedacinho de comida e falou “tipe, tipe, tipe” ele levantou a cabeça, saiu da caixa e foi cambaleando, cambaleando, saborear o petisco. Depois, para minha surpresa, lambeu amoroso a mão da minha irmã. Que fez seu rá, rá, rá, triunfante, o afagou com gosto e completou:
“Tipe, tipe, tipe. Isso! Ele mesmo já escolheu seu nome: Tipe!”
Reclamei, sustentei o título, chamei, chamei de novo, com energia de um soluço engasgado “Tigre Negro! Vem cá!”.  Depois, minha voz foi se entristando baixinho, mas ele não veio. Ester tentou consolar:
“O tigre é um felino. Vai ver que ele acha que você tá chamando ele de gato...Ele é um cachorro valente.” 
Ela então o conduziu de volta para a caixinha de papelão e me ensinou que, coçando a orelha do bichinho, ele fechava os olhos. Depois segurou minha mão e fez meu dedo passear ao longo do focinho do cachorrinho, que foi se acalmando, me acalmando. Até que manso, ele dormiu com um suspiro adocicado.
Como muitas vezes ainda faria, me deixei consolar afagando longa e serenamente aquele meu novo amigo. E sussurrei, ainda que sem jeito, para mim e para ele:
“Dorme, Tipe. Dorme bem.”

***
Ainda que para o veterinário eu insistisse que o nome do meu amigo era Tigre Negro (“só o apelido é Tipe, mas pode chamar desse jeito mesmo”), acabei me rendendo ao inevitável e, exceto nas histórias ilustradas com canetinha – “em que o fabuloso herói Tigre Negro salva sua amada cachorrinha pequinês Pink” -, o nome “Tipe” passou a ser um dos que mais minha voz lançava pela casa com amor e alegria.
Não que fosse indomável, mas ninguém achou que adestrá-lo fosse importante. Assim, se ele era normalmente proibido de entrar nos cômodos internos da casa e até no pátio, lá no quintal (que começava no muro baixo e vazado, com seu portãozinho de ferro, e ia até o quartinho dos fundos), Tipe se espalhava com tal liberdade, que domá-lo pareceria violência ou insensatez.  Mesmo sendo completamente indisciplinado – ele nunca trouxe a bolinha atirada de volta -, Tipe se tornou meu grande parceiro pela cumplicidade.
Quando eu chegava triste, ele me olhava fundo, se sentava ao meu lado no chão e depois se ofertava para um afago silencioso. E permanecia lá, até que a minha tristeza se perdesse na sua pelagem preta.  Mas quando eu vinha felizando o dia, ele me pulava nas pernas, pegava alguma bola e saía correndo pra que eu fosse atrás dele sem nunca alcançá-lo. Depois ficávamos os dois exaustos, encostados em uma das colunas do ranchinho ou no tanque de pedra onde minha mãe o banhava.  Quando as respirações se acalmavam, ele oferecia a barriga e eu a coçava rapidamente do lado esquerdo, o que fazia a pata traseira da mesma banda girar freneticamente.  Ele então se esticava todo de contentamento.
Em outros dias, minha alegria de menino era tanta e se transbordava de tal forma, que só de me ver Tipe danava a fazer círculos enormes pelo quintal, numa velocidade três vezes maior que normalmente ele mostrava: cinco, seis voltas, passando feito um tiro em meio a galhos, troncos, touceiras, pedaços de madeira, degraus de canteiros, colunas do ranchinho aberto (que ficava no caminho), vasos, vasilhames e todo tipo de tralhas. Nada, nada o segurava. Ficava morrendo de medo que ele trombasse de frente com uma árvore, tropeçasse numa garrafa ou ficasse entalado entre galhos cortados. Mas Tipe parecia guiado por uma força sobrenatural, como se algo o conduzisse pelas frestas mais escondidas para que ele seguisse sua sina de relâmpago.  Depois parava bruscamente, bebia sua água com sofreguidão e vinha manso descansar ao meu lado.
Talvez por seu reino se limitar às fronteiras do quintal, Tipe se tornou uma fera com estranhos.  Se era amoroso e cheio de dengos para com os da casa, com os de fora – exceto com a Jô, Dona Délia e sua neta Marcinha e, lógico, com a Tita, por quem Tipe morria de amores -, ele se transformava mesmo em Tigre Negro, rosnava com força e, se pudesse, partia para o ataque.
Seus alvos preferidos eram os meus amigos que vinham para brincar ou jogar bola no pátio: talvez achasse que eles queriam machucar o seu querido parceiro.  Nesses dias, Tipe latia furiosamente e sem trégua, e quase se esgoelava com a cabeça entre as grades do portãozinho. Meu pai chegou a colocar uma tela e alguns arames grossos para ele não se machucar ou ficar entalado, mas para infelicidade dos meus amigos, Tipe, de tanto chacoalhar o portão, acabava por abrir o trinco e disparava feito um raio louco pra cima dos meninos.
Um dia ele foi direto na canela do Genival: não machucou muito, mas fez terminar o  futebol daquela tarde e quase acabou com a amizade também. Mas quando o Tipe foi pra cima do Nando, a coisa ficou feia pro lado do meu cachorro. A sorte é que, goleiro voador que era, Nando deu três pulos altos e livrou sua canela saltando pra cima da mesa da copa.  E enquanto eu prendia o Tipe de novo, balançando no ar uma folha de espada-de-são-jorge (uma das poucas coisas que o Tipe temia, embora nunca tenha apanhado), meu pai foi tirar o Nando de cima da mesa.
Depois daquele susto, ficou decidido: enquanto meus amigos estivessem em casa, Tipe ficaria preso no quartinho dos fundos.  Mas para que meu amigo ficasse mais à vontade durante seu desterro, meu pai serrou a porta do quartinho ao meio e colocou um trinquinho na parte de baixo, deixando a metade de cima aberta para o ar, para o som e para o sol.
Jogando bola com a molecada, eu ouvia ao longe os latidos incansáveis e ferozes do Tigre Negro.  E quando os meninos iam embora, lá ia eu libertar meu amigo.  Que pulava em mim afoito, parecendo conferir se aqueles intrusos tinham me machucado.  Cheio de remorso eu abraçava meu amigo, enchia seu potinho de água fresca e me sentava ao seu lado, conversando com ele, perguntando por que era tão bravo.  E ele, Tipe renascido, já despido do temível Tigre Negro, se aninhava tranquilo por me ver seguro de novo.
Ele e seu parceiro, mais uma vez, tinham conseguido escapar de todos os perigos do Universo.

***
Além de ter sido um amado professor de Educação Física e um lendário técnico de basquete e vôlei, tio Sebastião Simões nunca deixou para o dia seguinte o que podia fazer no anterior. Talvez por isso, assim que se viu preocupado com minha coluna de 16 anos moldada pela miopia, ele resolveu construir uma barra fixa para eu me exercitar em casa. 
Para sustentar o cano de ferro da barra, tio Sebastião cavou dois buracos na parte cimentada do quintal e em cada um deles ergueu os enormes batentes de uma antiga porta que estavam encostados no ranchinho. Por fim, para deixar tudo bem seguro, construiu em volta da base daquelas colunas de madeira (já furadas no alto para receber o cano de ferro), dois “caixotes” de concreto.
De dentro do quartinho, enquanto tio Sebastião suava com suas ferramentas no quintal, Tipe  latia, só que sem muito entusiasmo. Mas só depois que a obra ficou pronta e tio Sebastião foi embora, que eu percebi que meu cachorro não estava muito bem: assim que foi solto, andando pelo quintal, Tipe trombou com a base da barra. Ele estava praticamente cego.
Não demorou muito, sua visão se perdeu totalmente, a barriga ficou inchada e dura, e ele entristeceu-se todo.  Só ficou a ternura. 
Numa tarde de sábado, minha mãe ligou para um ex-aluno que era veterinário. Ele veio, examinou o Tipe, balançou a cabeça e aplicou uma injeção para amainar suas dores.  E no dia seguinte, de manhã, as dores se foram todas. Menos a da tristeza, que se instalou sem prazo para ir embora: Tipe fechou os olhos sem que meus dedos precisassem passear por seu focinho.
Como meu pai estava em Ribeirão Preto, na casa da Ester, minha irmã Raquel convenceu seu namorado a cavar um buraco bem profundo perto do pé de caqui para enterrar o Tipe.  Eu despreguei uma das tábuas de uma caixa (do tipo usado para vender cachos de uva), peguei uma lente de aumento e fui pacientemente direcionando a luz do sol para queimar, feito um pirógrafo, a madeira macia. E ponto por ponto, fui gravando letras e números naquela lápide de pau, fogo e lágrima: “TIGRE NEGRO (TIPE) - 09/01/1979 - ...”.  A data da partida também estava lá na placa, mas agora não me lembro mais. Me esforço, faço contas e associações, mas o choro que embebedou aquele pedaço de madeira, apagou tudo. O ano talvez seja 1986 ou 1987 ou 1988, mas o dia e o mês se perderam em meio a todas as chuvas de céu e de olhos, assim como se desintegrou aquela tábua que tinha sido queimada pela dor e pelos raios do sol.
Meu pai, quando voltou de Ribeirão, para aplacar sua tristeza, plantou margaridas bem na área onde a terra ainda úmida abrigava meu amigo. E como a tristeza talvez fosse muita, nas bordas dos três canteiros do quintal, ele cultivou mais das mesmas flores, contornando aquele canto do mundo de branco, amarelo, verde e do silêncio de um Tigre Negro.
Até que eu girei a chave da porta da entrada de casa e, vindo lá de dentro, o latido vigilante de Tipe escorou-se em mim.  Mas quando entrei, nem era do Tipe a voz agora estancada: quem me olhava fundo nos olhos e corria para o tapete da sala de um apartamento, se esticando toda para um agrado, de barriga para cima, era a cadelinha malhada Nina.  Sem mesmo tirar o paletó, me agachei ligeiro para que as minhas mãos de menino se desdobrassem em mil e um afagos.  Mas aquele menino nem era eu.
Eu continuava de pé, no meio da sala daquele apartamento, vendo meu filho de capa e coragem, voando pelos séculos ao lado de sua parceira tigrada.
Os dois prontos para derrotar todos os vilões da galáxia.

Ilustrações: Erasmo Spadotto e Maria Luziano – cedidas pelo Jornal de Piracicaba
Publicado no Jornal de Piracicaba em 14 e 28/8 e 11 e 25/9/2016



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