(caio
silveira ramos)
De tanto andar,
fui parar em frente de um sebo na rua Cristiano Vianna, em São Paulo: um prédio
aparentemente pequeno, com uma porta estreita e uma grande vitrine onde se lia:
“Sebo Café Memória”. Entrei.
Por dentro, o sebo era grande:
prateleiras abarrotadas até o teto. Livros, revistas e catálogos empilhados
pelo chão. Centenas de LPs apoiados em três degraus que levavam a um piso um
pouco mais alto e igualmente tomado por livros.
Perto da entrada, um balcão feito de tijolos (e que provavelmente tinha
sido construído para abrigar o “setor do café” do sebo) fora também abocanhado
pelos livros, dando a impressão de que não se arranjaria ali nem um copo d’água
de torneira. Procurei apoiar meus pés
nos espaços vazios do chão, esbarrei nas pilhas de livros, me equilibrei. Até
que avistei uma moça que parecia tentar fazer uma inútil faxina no lugar. Perguntei se ela tinha um LP de um velho
sambista paulistano. A moça sumiu entre
as prateleiras e de repente ele chegou: cabelo grisalho escorrido até o
pescoço, barba por fazer, olhos enormes e um andar que parecia estar com
soluço.
“É você quem procura o LP?”
Tinha um jeito meio ríspido,
desafiador. Talvez o dono do sebo estivesse ressabiado: por que um fulaninho de
óculos e com cara de violinista iria querer um LP de um velho sambista
malandro? Mas conversando com o homem –
que se chamava Amadeu – percebi que eu estava enganado: ele só queria conhecer
a pessoa que procurava um LP antigo, de um músico antigo, quase esquecido. E
que ele admirava.
Conversamos longamente aquele dia. Seu
Amadeu tirou de algum lugar duas cadeirinhas de criança feitas de madeira e me
convidou para sentar ao lado de uma vitrola.
Colocou discos para eu ouvir, me mostrou livros. Rimos muito.
Bradava contra os enjoados: “poeira não é sujeira!” E desafiava os
modismos dizendo que, quando morresse, deveriam escrever em seu túmulo: “no
estádio, nunca fiz ‘ola’ ”, talvez querendo dizer que não era um maria-vai-com-as-outras. Quando me despedi, confessou que tinha em
casa outros livros e discos interessantes que poderia trazer no dia seguinte.
Fiquei de voltar.
E voltei. Voltei no dia seguinte, e no
outro, e no outro. Às vezes saía carregado com livros e discos. E sempre ouvia a mesma proposta: leva, vê,
depois você me devolve. O que eu
comprava, ele me vendia barato, quase constrangido.
Mesmo saindo tarde do serviço, antes de
voltar para casa, passava no sebo para conversar. Íamos para uma saleta nos
fundos da loja, também abarrotada dos mais diversos títulos e com outras duas
cadeirinhas se equilibrando nas pilhas de livros. E por horas ficávamos papeando, falando sobre
literatura, música, política e também sobre o passado dele, cheio de negócios
que não deram muito certo (chegou até a me propor uma sociedade em uma loja de
“bandoneons”, que gentilmente recusei não só por não ter nenhum centavo: “uma
loja de bandoneons no Brasil, seu Amadeu? É falência na certa.”). Confessou também alguns vícios, dos quais só
sobraram os cigarros. Muitos cigarros, que mantinham suas unhas eternamente
amareladas. De vez em quando as conversas iam para a parte da frente da loja e
os assuntos se desenrolavam junto à vitrola que tocava Eliseth Cardoso, Carlos
Gardel ou Piazzolla. Lá pela meia-noite,
eu o ajudava a apagar as luzes e a descer as portas de correr. Depois subíamos juntos a rua Teodoro Sampaio
até nos despedirmos na entrada da galeria que dava acesso ao prédio onde ficava
o apartamento (também tomado pelos livros) em que ele morava com Dona Miriam e
seus três filhos.
Nas manhãs que eu passava no sebo
vasculhando prateleiras e jogando conversa fora, via seu Amadeu atendendo seus
clientes. Alguns chegavam tímidos,
procurando algum título. Então, ele se
metia no meio das estantes e trazia o tal volume. Mas se achava fraco o livro pedido,
oferecia também outro, mais interessante, instigando o cliente com comentários
sempre curiosos. E se o fulano dizia que
não tinha como pagar, muitas vezes seu Amadeu dizia: “pode levar, fica com
ele”. Se algum desavisado pedia algum
livro que ele achava ruim (“tem o ‘Minha luta’, do Hitler, tiozinho?”), ele
contornava: “tenho, é bem caro, mas só consigo para amanhã. Enquanto isso, por que não vai dando uma lida
nesse, que é sobre o mesmo assunto?”. E o moleque saía todo feliz do sebo com
um livro denunciando as mazelas do Holocausto.
Esse “tenho, mas só consigo para
amanhã” era uma de suas frases mais repetidas. E não era mentira. Como sua casa era uma extensão da loja, ele,
rei no meio do caos, sabia que tinha o título pretendido. Talvez dentro da
banheira ou embaixo da cama. “Este é o sebo do dia seguinte”, me confessava
baixinho, rindo com todos os seus dentes.
Muitos clientes ele perdia com essa história. Mas a maioria voltava.
Voltava, no dia seguinte, fascinada como eu pelo mundaréu de livros. Ou pela conversa do dono do sebo.
Um dia, apareci com um conto inspirado
nele. “Mas só consigo ler para amanhã”, gracejou para esconder o
encabulamento. E no dia seguinte,
sentado na cadeira de criança, ele ergueu as sobrancelhas e me segredou: “quer
me fazer chorar?”.
Tempos depois, na porta do sebo
fechado, vi meu conto pregado, olhando para a rua:
O
descobridor das palavras
(caio silveira ramos)
Morava com minha mãe em um quarto e sala que ficava
em cima de um galpão que eu nunca vira de portas abertas. Porém,
quando voltei das férias na casa da tia Marina, havia alguma coisa lá. As pesadas portas de ferro estavam abertas e
de dentro brotavam livros de todos os tipos: novos, usados, com capas coloridas
ou apresentados em sisudas coleções encadernadas de couro. Fiquei ali em frente à vitrine, parado, os
olhos passeando pelas capas, querendo aterrissar em um volume vermelho com um
enorme balão amarelo desenhado.
Só conhecia os livros da escola, pois
em casa não cabiam estantes e a minha mãe "não se matava no tanque para
jogar dinheiro fora." Mas aquilo tudo inundava minha cabeça, meu nariz e
queria, queria muito sair pela boca.
Quando minha mãe já me puxava pelo
braço e abria o portão para subirmos para casa, uma voz deu duas piruetas e se
deixou cair nas minhas costas: "Senhora, deixa o menino ver!"
"Obrigada. Fica para outra vez."
E me puxou de novo. Mas a voz me grudara nas costas: "É esse que
você quer, garoto?" "Já disse
que fica para outra vez. Não tenho dinheiro agora." "Não precisa
pagar, não. Deixa ele levar, depois me
devolve. Vocês não moram aqui em
cima?"
Olhei minha mãe desconfiada. Olhei o
homem me estendendo o volume vermelho. E
antes que algum deles dissesse não-sim, peguei o livro com seu balão e,
agradecendo envergonhado, subi correndo as escadas de casa.
Enquanto minha mãe tentava entender aquele homem,
areando com força uma panela na cozinha, eu, sentado no chão da sala,
acariciava o brinquedo novo. Agora dava
para sentir sua capa antiga, passear pelo azul (sim, havia um céu azul
empoeirado), perceber que havia dois homens e uma moça dentro do cesto do balão
e tocar com os dedos as letras em relevo: "A Volta ao Mundo em Oitenta
Dias". Dava também para
reconstruir o rosto do dono da livraria (que, depois fiquei sabendo, chamavam
de sebo): cabelos grisalhos puxados para trás que escorriam até os ombros.
Óculos de aros escuros escorregando pelo nariz. E a voz, de um rouco abafado,
que ajudava a desenhar o sorriso de piano.
Passei a ir sozinho para escola e na
volta parava na frente da vitrine. Espiando.
Um dia, ele me surpreendeu e perguntou se eu não queria entrar. Fiquei
encabulado, já tinha terminado o livro, mas disse que precisava almoçar.
"Então volte depois."
Comi depressa, sem olhar minha mãe, que
como sempre ficava muda. Terminei, lavei meu prato e fui levar o lixo para a
rua. Antes de sair, experimentei: "preciso devolver o livro."
"Vá, mas não demore."
Primeiro entraram meus olhos. Diferente da vitrine, o sebo parecia uma
bagunça: livros por todo canto, pilhas mal equilibradas e discos de vinil em
fileiras pelo chão. Depois foram os
ouvidos: um som angustiado, som de línguas estranhas vindas de uma vitrola em
um canto. E ao lado da vitrola, sentado
em uma cadeira de criança, estava ele: "Pode entrar, sente aqui ao meu
lado. Gostou do livro? Deixe este ali naquela pilha e escolha outro."
Fiquei lá boa parte da tarde. Entre conversas com clientes e resmungos com
a esposa Judith, fiquei sabendo que seu nome era Irineu, que a música da vitrola
se chamava tango e que era cantada pelo moço emoldurado em uma das poucas
paredes livres: Carlos Gardel. Me mostrou livros antigos de aventura e me
apresentou a “seu” Lobato com um "leve 'Viagem ao Céu'." Havia também
um pôster apoiado em uma pilha de discos, com a foto de um cantor de braços
abertos, que parecia o homem mais feliz do mundo e se chamava Germano Mathias.
"O Catedrático do Samba!", apresentou seu Irineu, enquanto trocava o
disco de tango por um batuque que sincopou irresistível em meus sapatos.
E aquele ritual se repetiu por todos os dias
seguintes. Depois do almoço eu fazia as
entregas das roupas das clientes de minha mãe e ia para o sebo, procurar
livros, ler muito e ouvir o Gardel e o Mathias.
Eu chegava com um “oi” encabulado e procurava uma das cadeirinhas
próximas da vitrola. Ele sorria e às
vezes se sentava ao meu lado, sugerindo leituras ou me estendendo um pequeno
dicionário para eu mesmo brincar de Cabral com as palavras. Outras vezes eu só ficava lá, quietinho,
vendo ele conversar com clientes sobre autores que fui, aos poucos,
reconhecendo nas estantes.
Havia dias em que ele saía para comprar mais livros.
E antes que voltasse com sacolas carregadas de mais volumes antigos e seu
estranho caminhar de dançarino de valsa, dona Judith conversava comigo: “que
sua casa estava tomada pelos livros, que não podia nem mais ver novela porque o
sofá fora soterrado”. Mas seu olhar era inundado de paixão por aquele homem tão
estranho.
E eu me tornei uma traça faminta.
Devolvia um livro, pegava outro. Às vezes seu Irineu aconselhava:
"saboreie mais as palavras."
Isso durou
até eu cair doente. Febres e pesadelos
me derrubaram por uma semana. Sonhava com Dona Judith, tentando ver a novela
por entre os livros. Outras vezes ela estava sentada em cima de uma pilha
enorme, batendo a cabeça no teto, assistindo à TV que ficava em cima de outra
grande pilha: palafitas de papel e eletrodomésticos. Noutro sonho, seu Irineu
fechava o sebo, um caminhão levava todos os livros embora. Um barulho terrível
derrubava todas as estantes de tijolos e tábuas. E eu delirando: "eu
preciso devolver o livro, eu preciso devolver o livro."
Quando fiquei melhor e pude sair para rua, as portas
de ferro estavam realmente fechadas. Minha mãe desconversou. Voltando da
escola, eu tentava olhar por um buraco, mas o galpão continuava escuro e
silencioso.
Não pude devolver o último livro, que reli um milhão
de vezes. Refiz todas as viagens de
Marco Pólo e me tornei amigo íntimo de Kublai Kan. Até o dia em que minha mãe me entregou um
pacote. "Estive no centro da cidade
e me lembrei de você." O papel era amassado, o embrulho mal feito: seus
dedos grossos não estavam acostumados a delicadezas. Abri devagar e vi surgir "O Conde e o
Passarinho", de Rubem Braga.
"Desculpe, está velho, mas o moço disse que é bonito". Tentei um abraço apertado, mas seu corpo
também não estava acostumado a delicadezas.
Esqueci da hora, fiquei lendo até dormir. Acordo com a luz acesa: duas da manhã. A cama
ao lado da minha, continua arrumada.
Sem calçar os chinelos vou até a sala. E lá está ela, dormindo no sofá.
Um sono bom, sereno. Quase um sorriso nos lábios. Entre as mãos sobre o colo,
um livro aberto: parece um romance. Eu
quero chamá-la, beijar seus olhos, mas não tenho coragem: talvez ela sonhe. Nós
dois, numa manhã de sol, descendo as escadas em direção à rua. O galpão está reaberto, há uma floricultura
no lugar do sebo. Não. Uma loja de
espelhos.
Mas nada mais disso importa: estamos passeando,
pisando sobre as ruas de papel.
E flutuamos docemente sobre as palavras ensolaradas.
Gravuras: Brontops Baruq (cedidas pelo autor)
***
Na porta do sebo
fechado, vi meu conto pregado, olhando para a rua.
Vi e quase
entendi tudo. Ou tentei fingir que não entendia: meio zonzo, fui pedir
informação no restaurante de comida capixaba ao lado do sebo:
“Seu Amadeu
morreu hoje de manhã. A família pregou esse texto na porta e foi para o velório.
Depois vai ter a cremação na Vila Alpina.”.
Agradeci à
garçonete e subi, sabe-se lá de que jeito, até minha casa no final da rua
Teodoro Sampaio. E de lá fui para o velório.
As tristezas
foram chegando para os olhos e para o peito: os dedos entrelaçados de seu
Amadeu, com as unhas amareladas pelo cigarro. O suspiro desalentado de dona
Miriam. O abraço cheio de lágrima de
Rebeca, Raquel e Amadeuzinho.
Me lembrei de
meu pai, de sua partida. E descobri a
profunda dor da morte revivida.
Os dois, tão
diferentes de corpo e temperamento. De sentidos e engajamentos. Mas perdidas entre as estantes, as
semelhanças: o amor pela palavra escrita, pelas páginas sem fim emoldurando o
mundo; a ânsia de libertar as almas pelas ideias e criações dos livros. A
generosidade de reacender vidas esvaziadas pela miséria.
Durante mais de
uma semana, o sebo ficou fechado. E meu conto continuou lá pregado, olhando
para a rua. Sem um rasgo, sem um risco.
E quando Amadeuzinho e dona Miriam valentemente reabriram as portas do agora
“Sebo Memória...do Amadeu”, meu conto misteriosamente ganhou o mundo: de
repente apareceu numa roda de discussão de leitura de jovens da periferia.
Noutro dia, serviu para estimular um grupo de pacientes com distúrbios
psiquiátricos. E até apareceu como anexo no “Caderno Universitário 1”, “Coesão
e Coerência – algumas reflexões” (Piracicaba – Editora UNIMEP, 2004) escrito
pela brilhante pesquisadora e doutora em Linguística, Cristina Martins
Fargetti.
A porta aberta,
o som forte do tango saindo do meio dos livros, das estantes. Lá dentro, o disco rodando na vitrola.
E em frente à
vitrola, de costas para a entrada do sebo, dona Miriam sentada na cadeirinha de
madeira.
Soprei seu nome
com cuidado, toquei seu ombro, e ela se virou, enxugando os olhos, sorrindo
encabulada, “ai, meu filho”.
Puxei a outra
cadeirinha, me sentei, e ficamos lá, de mãos dadas, ouvindo o tango do disco.
E esperando os
dias seguintes.
Gravuras do conto:
Brontops Baruq (cedidas pelo autor)
Ilustração: Erasmo Spadotto – cedida pelo
Jornal de Piracicaba
Publicado no Jornal de Piracicaba em 3, 17
e 31/1 e 7/2/2016