sexta-feira, 29 de julho de 2016

O sopro do lobo

(caio silveira ramos)

Ela tinha 54 anos, fazia faxina e se encantou com nosso menino. Virava e mexia, ela aparecia com um bolo, uma roupinha, um brinquedo. E enchia os olhos de alegria ao ver o pequeno batendo palmas e correndo para lhe dar um beijo na bochecha.
Naquele dia, ela chegou com três porquinhos abraçados, que compunham uma única peça de plástico e se assemelhavam, nos focinhos e na roupagem, aos do desenho famoso dos Estúdios Disney.  Pra completar, nas costas do porquinho do meio havia um pequeno botão que, acionado, chiava no ar o refrão “Quem tem medo do lobo mau?”. Quando ouviu, o menino quase virou cambota de contentamento. Ela, no entanto, me perguntou o que é que os porquinhos estavam cantando.  Estranhei, mas debitei na conta da desaparelhagem sonora do brinquedo.
Sob o olhar dos dois, dei para desenrolar a história ali mesmo no chão da sala: era uma vez três porquinhos etc e tal.  Quando cheguei na parte da construção das moradas, enquanto o menino se preparava para se metamorfosear em lobo e soprar todos os ventos (conhecedor já de pedaços da história), pedi a cumplicidade dela para enflorecer o conto:
“O primeiro porquinho fez uma casa de...de... Do que mesmo, Ná?”
Ela sorriu estranhada:
“ ‘Uma casa de quê?’ Não sei. Os porquinhos são de uma história, é?”
Disfarcei o embaraço e engatei no conto, retirando do ar casas de palha, madeira e tijolos. E lobos, ameaças, sopros, bufos, peles de carneiro, chaminés e caldeirões fumegantes. Ela e o menino se encantaram. Mas eu fiquei, pelo resto do dia, espiando atônito pelo buraco da fechadura o lobo que também me espiava do outro lado da porta.
Desde que o inglês James Orchard Halliwell e o australiano Joseph Jacobs publicaram no século XIX suas versões de “A história dos três porquinhos”, que pertencia à cultura popular inglesa, muitos ventos sopraram: em 1933, Walt Disney espalhou o conto pelo mundo com seu curta-metragem de animação “The three little pigs”, embalado pela canção de Frank Churchill, “Quem tem medo do lobo mau?”.  Daí em diante, a história ganhou centenas de versões nas mais diversas línguas, quase sempre tomando por base o premiado curta americano: novos desenhos para cinema e televisão, paródias, quadrinhos, jogos, livros (dos mais diversos formatos, tamanhos e materiais), discos, brinquedos, fantoches e bonecos espalharam pelos quatro cantos do planeta o enredo, os porquinhos (com seus instrumentos, roupas e casas), a canção, a fala do lobo, o sopro do lobo e a fome do lobo, tudo à moda de Disney.  Nas versões impressas e sonoras até os nomes dos porquinhos (Heitor, Cícero e Prático) se popularizaram, embora Braguinha, ao contar a história para a “Coleção Disquinho”, da Continental, mesmo que baseado também na versão de Disney e na canção de Frank Churchill, tenha nomeado os três de Bolinha, Bolota e Bolão.
De qualquer forma, eu tinha certeza: essas informações pouco importavam para adultos e crianças de todo o planeta. Para eles, bastaria um simples assobio de um trecho de “Quem tem medo do lobo mau?” ou um esboço distraidamente rabiscado em um pedaço de papel (e que de alguma forma lembrasse três porquinhos ou três casinhas singelas), para que se lembrassem da história e começassem a soprar o mundo.
Até que uma mulher de 54 anos soprou também. Soprou qualquer certeza para longe.
E tudo voou pelo ar.

***

“A história dos três porquinhos” me parecia tão enraizada na cultura de todas as gentes que, quando aquela mulher de 54 anos e coração generoso disse desconhecer completamente o conto, o canto e os personagens, me espantei. E meu espanto me embaralhou pelo resto do dia.
Depois dei para pensar se aquele espanto diante do desconhecimento alheio não era uma visão turvada pela minha ignorância, fruto de um eurocentrismo esnobe e de uma disneycultura mergulhada em mim até os ossos.
Não, talvez eu estivesse exagerando. Ana Maria Machado escreveu na sua “Apresentação” para os “Contos de Fada” (ed. Zahar, 2010), que as histórias de Perrault, irmãos Grimm, Andersen e outros “fazem parte de um patrimônio comum de todos nós, um tesouro que a humanidade vem preservando pelos tempos afora”. E que “cada um de nós tem direito a um quinhão dele”.  E vai mais além ao afirmar que o historiador José Murilo de Carvalho “confirmou o que as Histórias de Tia Nastácia (de Monteiro Lobato) ou as Histórias da Velha Totonha (de José Lins do Rego) já apontavam: o repertório de contos maravilhosos narrados por escravos e seus descendentes em fazendas no século XIX e início do XX era europeu, filtrado pela linguagem e habilidade narrativa africanas – um importante capítulo de nossa formação cultural”.
De qualquer maneira, embora os três porquinhos e o lobo já tenham ultrapassado o folclore inglês e os produtos da Disney, e sejam hoje um verdadeiro “fenômeno pop” – tanto que o brinquedo sonoro representando os personagens dado ao meu filho por sua admiradora fora comprado num camelô da rua Silva Bueno –, é claro que existem crianças e adultos, dos mais diferentes grupos espalhados pelo planeta, que desconhecem totalmente a tal história. E conhecem muitas e muitas outras, tão ricas e interessantes quanto. Lendas e cantos que falam das Histórias de cada povo, com seus sonhos, sua geografia e sua própria cultura.
Quantas e quantas narrações fantásticas das mais diversas raças e etnias que formaram e formam o Brasil são desconhecidas dos nossos currículos e das nossas vidas, e infelizmente não fazem parte dos nossos sonhos e dos sonhos de tantas crianças do País. Merecemos essas histórias, assim como todos, todos, merecem os contos de Perrault, Grimm, Andersen e Jacobs. Antropofagicamente deglutidos ou não.
Mas naquele meu espanto diante do desconhecimento de “Os três porquinhos” havia mais do que a minha ignorância e a simples constatação de que, qualquer que fosse a forma, os personagens já tinham mergulhado, não na barriga do lobo, mas no mais profundo imaginário popular.   
Meu espanto era a surpresa diante de uma infância pilhada.
Aquela mulher de 54 anos não trazia a história dos três porquinhos, como também não trazia, da fazenda de cacau em que tinha nascido e passado boa parte da sua meninice, qualquer história inventada ou lenda soprada pelos mais antigos.  A história de infância que ela trazia era a dela mesma: uma história difusa, em que o trabalho na lavoura desde muito cedo parecia engolir suas mais remotas lembranças.  Em que a mesquinhez do dono da fazenda, a brutalidade do pai e dos parentes, e a resignação da mãe lhe tinham roubado qualquer possibilidade de criação do imaginário de sua própria infância.  Vassoura de bruxa? Para ela era simplesmente uma terrível praga que devastava a lavoura de cacau e que tinha provocado o êxodo de sua família de uma terra que de fato nunca fora sua.
Hoje, suas canções de embalar os filhos e os netos são músicas românticas ou religiosas ouvidas do rádio de agora e não as dos braços que um dia, ainda que pouco, a tomaram no colo. As histórias que gosta de contar são as que assiste nos programas policiais da TV, que parecem oferecer o vislumbre de vidas ainda mais trágicas que a sua, marcada pela violência que lhe comeu a infância e que devora sua paisagem diária.
E, ainda que com muito sacrifício sua casa seja feita de tijolos, o lobo está ali fora.
E continua à espreita.


Ilustração: Erasmo Spadotto – cedida pelo Jornal de Piracicaba
Publicado no Jornal de Piracicaba em 3 e 17/7/2016

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