sexta-feira, 29 de julho de 2016

Manchas

(caio silveira ramos)

“Então você é sobrinho do João Fazendinha, hein?”
Percebi que aquele homem se referia a meu tio João, irmão mais velho da minha mãe.  Mas não entendi a razão do apelido. E me incomodou a graça que ele pôs na boca para fazer a pergunta. Olhei para minha mãe, mas foi ele quem continuou:
“Seu tio se gabava tanto da tal fazenda no alto da Serra de Brotas e floreava tanto as histórias que ele teria vivido por lá, que não tinha como a gente não cutucar com o apelido... Mas tem um coração imenso e é desde menino um excelente amigo”.
Tio João sempre me pareceu a ovelha diferente de uma família que nunca deixou de levar suas contas com sacrificada rédea curta e na ponta do lápis.  Cheio de ideias para novos negócios, recheava sua certeza de que o próximo plano finalmente “arrebentaria a boca do balão” com uma imaginação profundamente fértil, um olhar de Detetive Columbo e uma lábia que fazia derreter qualquer desavisado do outro lado da linha telefônica: “boa tarde, senhorita, quem fala aqui é o Dr. Mello...”  A tal fala adquiria ares de ainda maior confiabilidade quando ele caprichava no carregado sotaque caipiracicabano nunca perdido.   Me lembro de uma viagem até a Serra de Brotas, quando ele, tia Maria da Glória e eu procurávamos a exata localização da fazenda lendária. Ao avistar a touceira de uma planta que lhe indicaria o ponto exato da antiga porteira da “Nossa Senhora da Glória”, tio João se entusiasmou e desprendeu o sotaque de dentro da alma: “Pára o carro, Maria! É aqui!! Olha o vetiver!!”  Mas ele nem precisava descer do carro e me fazer sentir o cheiro da planta.  Aquele “vetiver” dele saiu com todos os “ês” e “erres” a que tinha direito. E muitos outros mais e além.  O “vetiver” falado por tio João já vinha perfumado e recriava a extinta fazenda diante dos meus olhos e do meu espanto.
De negócio em negócio, com reviravoltas e mais reviravoltas de sua vida, foi morar em Goiás e de lá me trouxe um arco e flecha que teria recebido de presente de legítimos índios guerreiros de uma tribo perdida.  Eu amava a história de Robin Hood e quando tio João me viu esticando um elástico entre as pontas de um cabide de madeira quebrado, me prometeu que na próxima volta, traria a arma do meu herói. E caprichando no sotaque, emendou: “você vai ver que quem verga não é a corda. É o arco”. E não é que era verdade mesmo?
Por causa de suas histórias, de um “sempre novo” negócio que finalmente arrebentaria a boca do balão, daquele arco e flecha, e de um fone de ouvido que já vinha com um radinho de pilha AM/FM embutido, dei pra sonhar com outros presentes.   Presentes nunca pedidos nem mesmo em pensamento. Presentes timidamente paquerados no fundo da imaginação silenciosa.
Seria assim: um dia, do nada, tio João apareceria com um Autorama, que eu montaria no “quarto do piano” para disputar corridas com todos os meus amigos até a hora da janta.  Noutro sonho, meu tio chegaria com um “Telejogo” (“exclusividade Mappin!”), para que eu me tornasse o rei do paredão, do tênis e do futebol, simplesmente girando um botão.  Já mais velho, dei para imaginar que entregariam na porta de casa um pacote enorme, enviado logicamente por tio João. E de lá de dentro, roncaria o motor de uma Mobilete que me levaria pra passear tranquilo no quintal, enquanto meus dezoito anos não chegassem me convidando pra dar voltas pelas ruas da cidade.
Suspeito que, se meu pensamento tivesse a cara de pau de sobrevoar os sonhos do tio João, ele teria feito alguma loucura para satisfazer meus desvarios.  Mas hoje vejo que ele foi muito além disso.
Para encortinar uma tristeza desmedida, tio João desanuviou uma história inteira.


***

A tristeza chegou desmedida, mas talvez nem fosse o caso. É que quando se tem 11, 12 anos, o mundo sonhado é grande demais. E qualquer esbarrão que atrapalhe o sonho se transforma numa entrada desleal e violenta do adversário, fazendo o jogador sair de maca rolando de dor e pedindo o colo da mãe.
A minha tristeza nascia de uma prova de Matemática que eu tinha feito naquela manhã e colocado, todo confiante, na mesa do professor. Mas a confiança foi parar na sola do pé assim que cruzei a porta da sala de aula: de repente me dei conta de um erro terrível.   Terrível porque eu sabia a matéria e tinha me distraído com um detalhe muito simples, mas que comprometia quase toda a prova. Pensei em voltar e implorar ao professor que me deixasse corrigir a distração. Mas sabia que aquilo era impossível. E segui em frente com a alma dilacerada e o orgulho ferido.  Exagero? Podia ser.
No almoço, meu garfo redesenhava a comida no prato, mas não queria chegar até a boca.  Com um nó na garganta e a cabeça baixa, nem percebi que tio João, que passava uns dias lá em casa, puxou a cadeira para se sentar ao meu lado. Usando uma roupa que eu achava que o nome era “safári” (mas descobri depois que o correto era “slack”), ele pousou sua mão no meu ombro e me perguntou qual era a causa da tristeza. Expliquei, ainda de cabeça baixa, a situação e ele me disse que tudo passaria. E em breve eu esqueceria o problema e a tristeza: “a vida dá muitas voltas. Veja eu, por exemplo...” E me contou que, certa vez, o avião em que estava viajando tinha caído. Era um avião pequeno, com poucos passageiros, o acidente tinha sido feio. Mas ele tinha sobrevivido.
Levantei a cabeça surpreso: diante daquela situação meu problema parecia ter corrido para o ralo mais próximo. Mas devo ter feito certo ar de descrença, pois ele emendou outra história:
“Tinha uma menina na minha escola: ela era a mais linda do mundo.Tudo nela era perfeito: os cabelos, os olhos, o sorriso. A roupa era a mais bonita e bem cuidada. O seu andar era o mais perfumado.  E ainda ela tinha o mais belo caderno de recordações que eu já tinha visto: a capa de couro, adornada nos cantos com plaquetas de metal dourado, mostrava uma paisagem pintada por algum grande artista, onde se destacava uma linda menina: a gravura parecia ter sido feita para ela. Inspirada nela. Havia ainda uma fechadura delicada que só podia ser aberta por uma chave de ouro presa numa corrente finíssima também de ouro.  Por dentro, o livro era ainda mais bonito: cada página, costurada à mão ao volume, abrigava uma moldura tecida com filetes dourados.  Em cada uma, letras caprichadas, às vezes acompanhadas por desenhos belíssimos, revelavam os textos mais doces e carinhosos dedicados à menina. Para minha surpresa, certo dia ela chegou perto de mim e com a voz mais suave do mundo pediu: ‘João Baptista, você poderia escrever no meu livro de recordações? Você tem tantas ideias, é tão criativo! E ainda tem a letra mais linda que eu conheço.  Escreve para mim, por favor!’”
O jovem João, sempre confiante e seguro, daquela vez se encabulou e derreteu: no livro, só pessoas muito especiais tinham deixado suas recordações: as três melhores amigas, a irmã, a mãe, a madrinha e uma tia querida. Homens, apenas dois: o pai e um primo mais velho e galante.  João tentou se recuperar do susto, construiu seu olhar mais charmoso e aceitou o convite. A menina entregou-lhe o livro, deu um beijinho no seu rosto e partiu ofertando seu sorriso encantado para o mundo.
Em casa, João se acomodou diante da escrivaninha do pai, endireitou o corpo, pigarreou solenemente três vezes, abriu o livro na página que receberia seu texto, esticou os braços e finalmente pegou a caneta para mergulhar no tinteiro.
Mas talvez emocionada, sua mão esbarrou no tal tinteiro e o derrubou.
E sem dó, ele desaguou quase todo seu azul na página branca e desavisada.

***
Quando tio João contou sobre o tinteiro se derramando na página do livro de recordações, esqueci minha tristeza e fiquei paralisado, de queixo caído.
A sorte é que no pretérito quase perfeito o jovem João agiu rápido, ergueu o livro, virou-o aberto para baixo e isolou a folha manchada para que a tinta não se espalhasse pelas outras páginas. 
A seguir, pegou uma tira de mata-borrão e a colocou atrás da tal folha. Por fim, com mais calma, repousou o livro novamente sobre a mesa e foi tentando secar a mancha, dessa vez com a ajuda do “berço” de madeira para aplicar o mata-borrão.  Com um pano, conseguiu limpar algumas poucas gotas que tinham respingado na beirada da capa de couro e na escrivaninha do pai. Então, quase refeito, olhou desanimado para o estado da arte.
Folheando rapidamente o livro, tudo parecia perfeito: as páginas, seus escritos e desenhos caprichados continuavam lá, rendendo as mais delicadas homenagens à menina bonita. Mas de repente, os olhos se desmoronavam quando encontravam aquela única página com sua enorme mancha azul, que preenchia quase todo espaço emoldurado pelos filetes dourados.  João tentou pensar pelo lado bom: as outras folhas estavam intactas. E até o verso da manchada não revelava muito o oceano azul.
No outro dia, na escola, a menina se aproximou doce e esperançosa: “Joãozinho, querido, o que você escreveu para mim?” João escondeu o quase desespero atrás do seu sorriso mais sedutor e, vestindo-se de confiança, respondeu: “Ainda não ficou pronto: estou preparando algo muito especial para você...”
Mas à noite, escondido dos pais e dos irmãos, João olhou desconsolado para o infinito azul. Já seco, mas profundamente azul. 
Como não dava para apagar a mancha, pensou até em arrancar a página. Mas logo percebeu que isso era impossível: além de se deparar com um minúsculo sinal dourado no pé de cada folha – as páginas eram numeradas! –, notou que todas eram cuidadosamente costuradas umas as outras: a retirada de uma delas não só poderia comprometer a beleza do livro, como não daria sequer para imaginar o que aconteceria com o conjunto todo.  Porém, João imaginou. Imaginou todas as folhas se desprendendo da lombada: páginas de declarações voando pela janela. O livro se desmanchando junto com os olhos da menina.
Outro dia clareou e, mais uma vez, lá foi João de cabeça baixa e mãos vazias para a escola. No recreio, ela apareceu como o sol:
“Escreveu, João?”
E no outro dia:
“Você trouxe meu livro João Baptista?” (Ela fez questão de pronunciar o “pê” mesmo que mudo).
Mais um dia. E ela veio de novo. Mas ao contrário do que João esperava, chegou desarmada:
“João, eu sei que você está caprichando, mas será que poderia trazer meu livro amanhã? Minha prima do Rio vai passar só este final de semana em casa e eu queria muito que ela escrevesse para mim também...”
Não tinha mais jeito. Precisava ser naquela sexta-feira.
Tio João olhou para mim e sorriu:
“Então, depois de uma noite sem sono, fui para escola e, antes de começar a aula, caminhei firme e entreguei o livro pra ela: ‘Não abra agora, por favor. No recreio você me diz o que achou.’ Esperei ansioso o intervalo e assim que tocou o sinal ela veio na minha direção. Veio séria, olhando para mim. Por um instante tremi, mas não abaixei a cabeça.  Ela chegou, me deu um beijo muito terno no rosto. Depois sorriu: ‘Joãozinho, é a coisa mais linda que eu já recebi na vida. Nunca vou esquecer você. Obrigada.’ E saiu, com a lágrima pendurada em algum canto do mundo, me deixando apenas o sorriso. O sorriso que palmilhou o meu destino.”
Fiquei ali, esperando que ele reabrisse o livro. Que ele me dissesse logo o que a menina tinha visto.
Então ele me revelou todos os mistérios do oceano.

***

Mas antes de revelar todos aqueles mistérios, tio João guardou suspense e me olhou de canto, com seu sorriso malandreado número 85,4 (talvez o mesmo sorriso de um menino que fazia tranças nas crinas dos cavalos e no dia seguinte punha a arte na conta do saci).  Só que eu continuei sem voz, sem um respiro, esperando que o passado me invadisse. E no meu silêncio, o oceano se revelou:
“No canto, no único espaço não coberto pela tinta azul dentro da moldura dourada, eu escrevi: QUE ESSA SEJA A ÚNICA PÁGINA MANCHADA DE SUA VIDA. COM CARINHO, JOÃO BAPTISTA”.
Tio João me sorriu seu sorriso malandreado número 94,3.  E eu devolvi o meu, encabulado e surpreso. E me esqueci da prova de Matemática. E me esqueci de qualquer tristeza.
Mas passados tantos anos, ainda me pergunto se toda aquela história seria verdadeira. 
Teria realmente a menina recebido tão bem aquela mancha em seu caderno precioso, mesmo que acompanhada por uma frase inspirada?  Ela teria convivido com aquele oceano azul ressacando com tanta violência suas lembranças?
E de tanto pensar, chego a duvidar da existência da menina. Da existência do caderno. E do pedido. E da mancha. Do beijo. De toda historia, enfim.
Verdadeiro ou não, aquele relato me consola e me enche de fascínio: se não é real, mostra o inegável talento de tio João para contar histórias e enganar os desenganos.
Muitas vezes, reencontro aquele enredo pelos caminhos tortuosos. Então, vislumbro possibilidades de corrigir erros e endireitar estradas.  Até consigo reconstruir trilhas que pareciam perdidas para sempre.  E acho que tio João também.  Tanto, que já passou dos 90 anos e continua forte, com seus muitos sorrisos. E suas muitas histórias.
E eu também: sigo imaginando e historiando:
Imagino um apartamento num andar alto de um prédio.  Imagino um quarto. E uma janela. E naquela janela, uma mulher, com seus 92 anos, que olha a cidade grande se espalhando feroz pelas ruas cinzentas.
A mulher deixa a janela. Escuta seus bisnetos brincando na sala, mas não presta atenção.  Ela agora olha para seu quarto: a cama arrumada, um quadro na parede, o criado-mudo, uma gaveta. Ela abre a gaveta.  Debaixo de alguns papéis e de um cartão com um desenho infantil e a frase “para a vovó, com amor”, ela retira um velho caderno. Mas não é um caderno comum: a capa de couro, adornada nos cantos com plaquetas de metal dourado, mostra uma paisagem pintada por algum grande artista, onde se destaca uma linda menina. Há ainda uma fechadura delicada que só pode ser aberta por uma chave de ouro presa numa corrente finíssima também de ouro.  Por dentro, o livro é ainda mais bonito: cada página, costurada à mão ao volume, possui uma moldura tecida com filetes dourados.  Em cada uma, letras caprichadas, às vezes acompanhadas por desenhos, revelam textos doces e carinhosos dedicados a alguém.  De repente, uma enorme mancha azul, um tanto desbotada, invade os olhos da mulher.  Ela afaga a página, a mancha e uma pequena frase escrita com letra caprichada num dos cantos da moldura dourada.  Depois, volta a guardar o livro na gaveta do criado-mudo, bem debaixo dos papéis e do cartão “para a vovó, com amor”.  As crianças brincam na sala, enquanto a mulher leva seus 92 anos para janela da cidade grande que continua se espalhando feroz pelas ruas cinzentas.
Tudo se resolve.
Tudo.
Talvez menos a saudade acabrunhando a alma.
E o amor querido, mas não realizado. 


Ilustração: Erasmo Spadotto – cedida pelo Jornal de Piracicaba
Publicado no Jornal de Piracicaba em 8 e 23/5 e  6 a 20/6/2016

Nenhum comentário:

Postar um comentário

INFINITE-SE: