(caio
silveira ramos)
“Então você é
sobrinho do João Fazendinha, hein?”
Percebi que
aquele homem se referia a meu tio João, irmão mais velho da minha mãe. Mas não entendi a razão do apelido. E me
incomodou a graça que ele pôs na boca para fazer a pergunta. Olhei para minha
mãe, mas foi ele quem continuou:
“Seu tio se
gabava tanto da tal fazenda no alto da Serra de Brotas e floreava tanto as
histórias que ele teria vivido por lá, que não tinha como a gente não cutucar
com o apelido... Mas tem um coração imenso e é desde menino um excelente
amigo”.
Tio João sempre me pareceu a
ovelha diferente de uma família que nunca deixou de levar suas contas com
sacrificada rédea curta e na ponta do lápis.
Cheio de ideias para novos negócios, recheava sua certeza de que o
próximo plano finalmente “arrebentaria a boca do balão” com uma imaginação
profundamente fértil, um olhar de Detetive Columbo e uma lábia que fazia
derreter qualquer desavisado do outro lado da linha telefônica: “boa tarde,
senhorita, quem fala aqui é o Dr. Mello...”
A tal fala adquiria ares de ainda maior confiabilidade quando ele
caprichava no carregado sotaque caipiracicabano nunca perdido. Me lembro de uma viagem até a Serra de
Brotas, quando ele, tia Maria da Glória e eu procurávamos a exata localização
da fazenda lendária. Ao avistar a touceira de uma planta que lhe indicaria o ponto
exato da antiga porteira da “Nossa Senhora da Glória”, tio João se entusiasmou
e desprendeu o sotaque de dentro da alma: “Pára o carro, Maria! É aqui!! Olha o
vetiver!!” Mas ele nem precisava descer
do carro e me fazer sentir o cheiro da planta.
Aquele “vetiver” dele saiu com todos os “ês” e “erres” a que tinha
direito. E muitos outros mais e além. O
“vetiver” falado por tio João já vinha perfumado e recriava a extinta fazenda diante
dos meus olhos e do meu espanto.
De negócio em negócio, com
reviravoltas e mais reviravoltas de sua vida, foi morar em Goiás e de lá me trouxe
um arco e flecha que teria recebido de presente de legítimos índios guerreiros
de uma tribo perdida. Eu amava a
história de Robin Hood e quando tio João me viu esticando um elástico entre as
pontas de um cabide de madeira quebrado, me prometeu que na próxima volta,
traria a arma do meu herói. E caprichando no sotaque, emendou: “você vai ver
que quem verga não é a corda. É o arco”. E não é que era verdade mesmo?
Por causa de suas histórias, de
um “sempre novo” negócio que finalmente arrebentaria a boca do balão, daquele
arco e flecha, e de um fone de ouvido que já vinha com um radinho de pilha
AM/FM embutido, dei pra sonhar com outros presentes. Presentes nunca pedidos nem mesmo em
pensamento. Presentes timidamente paquerados no fundo da imaginação silenciosa.
Seria assim: um dia, do nada, tio
João apareceria com um Autorama, que eu montaria no “quarto do piano” para
disputar corridas com todos os meus amigos até a hora da janta. Noutro sonho, meu tio chegaria com um “Telejogo”
(“exclusividade Mappin!”), para que eu me tornasse o rei do paredão, do tênis e
do futebol, simplesmente girando um botão.
Já mais velho, dei para imaginar que entregariam na porta de casa um
pacote enorme, enviado logicamente por tio João. E de lá de dentro, roncaria o
motor de uma Mobilete que me levaria pra passear tranquilo no quintal, enquanto
meus dezoito anos não chegassem me convidando pra dar voltas pelas ruas da
cidade.
Suspeito que, se meu pensamento
tivesse a cara de pau de sobrevoar os sonhos do tio João, ele teria feito
alguma loucura para satisfazer meus desvarios.
Mas hoje vejo que ele foi muito além disso.
Para encortinar uma tristeza
desmedida, tio João desanuviou uma história inteira.
***
A tristeza chegou desmedida, mas
talvez nem fosse o caso. É que quando se tem 11, 12 anos, o mundo sonhado é
grande demais. E qualquer esbarrão que atrapalhe o sonho se transforma numa
entrada desleal e violenta do adversário, fazendo o jogador sair de maca
rolando de dor e pedindo o colo da mãe.
A minha tristeza nascia de uma
prova de Matemática que eu tinha feito naquela manhã e colocado, todo
confiante, na mesa do professor. Mas a confiança foi parar na sola do pé assim
que cruzei a porta da sala de aula: de repente me dei conta de um erro
terrível. Terrível porque eu sabia a
matéria e tinha me distraído com um detalhe muito simples, mas que comprometia
quase toda a prova. Pensei em voltar e implorar ao professor que me deixasse
corrigir a distração. Mas sabia que aquilo era impossível. E segui em frente
com a alma dilacerada e o orgulho ferido.
Exagero? Podia ser.
No almoço, meu garfo redesenhava
a comida no prato, mas não queria chegar até a boca. Com um nó na garganta e a cabeça baixa, nem
percebi que tio João, que passava uns dias lá em casa, puxou a cadeira para se
sentar ao meu lado. Usando uma roupa que eu achava que o nome era “safári” (mas
descobri depois que o correto era “slack”), ele pousou sua mão no meu ombro e
me perguntou qual era a causa da tristeza. Expliquei, ainda de cabeça baixa, a
situação e ele me disse que tudo passaria. E em breve eu esqueceria o problema
e a tristeza: “a vida dá muitas voltas. Veja eu, por exemplo...” E me contou
que, certa vez, o avião em que estava viajando tinha caído. Era um avião
pequeno, com poucos passageiros, o acidente tinha sido feio. Mas ele tinha
sobrevivido.
Levantei a cabeça surpreso:
diante daquela situação meu problema parecia ter corrido para o ralo mais
próximo. Mas devo ter feito certo ar de descrença, pois ele emendou outra
história:
“Tinha uma menina na minha
escola: ela era a mais linda do mundo.Tudo nela era perfeito: os cabelos, os
olhos, o sorriso. A roupa era a mais bonita e bem cuidada. O seu andar era o
mais perfumado. E ainda ela tinha o mais
belo caderno de recordações que eu já tinha visto: a capa de couro, adornada
nos cantos com plaquetas de metal dourado, mostrava uma paisagem pintada por
algum grande artista, onde se destacava uma linda menina: a gravura parecia ter
sido feita para ela. Inspirada nela. Havia ainda uma fechadura delicada que só
podia ser aberta por uma chave de ouro presa numa corrente finíssima também de
ouro. Por dentro, o livro era ainda mais
bonito: cada página, costurada à mão ao volume, abrigava uma moldura tecida com
filetes dourados. Em cada uma, letras
caprichadas, às vezes acompanhadas por desenhos belíssimos, revelavam os textos
mais doces e carinhosos dedicados à menina. Para minha surpresa, certo dia ela
chegou perto de mim e com a voz mais suave do mundo pediu: ‘João Baptista, você
poderia escrever no meu livro de recordações? Você tem tantas ideias, é tão
criativo! E ainda tem a letra mais linda que eu conheço. Escreve para mim, por favor!’”
O jovem João, sempre confiante e
seguro, daquela vez se encabulou e derreteu: no livro, só pessoas muito
especiais tinham deixado suas recordações: as três melhores amigas, a irmã, a
mãe, a madrinha e uma tia querida. Homens, apenas dois: o pai e um primo mais
velho e galante. João tentou se
recuperar do susto, construiu seu olhar mais charmoso e aceitou o convite. A
menina entregou-lhe o livro, deu um beijinho no seu rosto e partiu ofertando
seu sorriso encantado para o mundo.
Em casa, João se acomodou diante
da escrivaninha do pai, endireitou o corpo, pigarreou solenemente três vezes,
abriu o livro na página que receberia seu texto, esticou os braços e finalmente
pegou a caneta para mergulhar no tinteiro.
Mas talvez emocionada, sua mão
esbarrou no tal tinteiro e o derrubou.
E sem dó, ele desaguou quase todo
seu azul na página branca e desavisada.
***
Quando tio João contou sobre o
tinteiro se derramando na página do livro de recordações, esqueci minha
tristeza e fiquei paralisado, de queixo caído.
A sorte é que no pretérito quase
perfeito o jovem João agiu rápido, ergueu o livro, virou-o aberto para baixo e
isolou a folha manchada para que a tinta não se espalhasse pelas outras
páginas.
A seguir, pegou uma tira de
mata-borrão e a colocou atrás da tal folha. Por fim, com mais calma, repousou o
livro novamente sobre a mesa e foi tentando secar a mancha, dessa vez com a ajuda
do “berço” de madeira para aplicar o mata-borrão. Com um pano, conseguiu limpar algumas poucas
gotas que tinham respingado na beirada da capa de couro e na escrivaninha do
pai. Então, quase refeito, olhou desanimado para o estado da arte.
Folheando rapidamente o livro,
tudo parecia perfeito: as páginas, seus escritos e desenhos caprichados
continuavam lá, rendendo as mais delicadas homenagens à menina bonita. Mas de
repente, os olhos se desmoronavam quando encontravam aquela única página com
sua enorme mancha azul, que preenchia quase todo espaço emoldurado pelos
filetes dourados. João tentou pensar
pelo lado bom: as outras folhas estavam intactas. E até o verso da manchada não
revelava muito o oceano azul.
No outro dia, na escola, a menina
se aproximou doce e esperançosa: “Joãozinho, querido, o que você escreveu para
mim?” João escondeu o quase desespero atrás do seu sorriso mais sedutor e,
vestindo-se de confiança, respondeu: “Ainda não ficou pronto: estou preparando
algo muito especial para você...”
Mas à noite, escondido dos pais e
dos irmãos, João olhou desconsolado para o infinito azul. Já seco, mas
profundamente azul.
Como não dava para apagar a
mancha, pensou até em arrancar a página. Mas logo percebeu que isso era
impossível: além de se deparar com um minúsculo sinal dourado no pé de cada
folha – as páginas eram numeradas! –, notou que todas eram cuidadosamente
costuradas umas as outras: a retirada de uma delas não só poderia comprometer a
beleza do livro, como não daria sequer para imaginar o que aconteceria com o
conjunto todo. Porém, João imaginou.
Imaginou todas as folhas se desprendendo da lombada: páginas de declarações
voando pela janela. O livro se desmanchando junto com os olhos da menina.
Outro dia clareou e, mais uma
vez, lá foi João de cabeça baixa e mãos vazias para a escola. No recreio, ela
apareceu como o sol:
“Escreveu, João?”
E no outro dia:
“Você trouxe meu livro João
Baptista?” (Ela fez questão de pronunciar o “pê” mesmo que mudo).
Mais um dia. E ela veio de novo.
Mas ao contrário do que João esperava, chegou desarmada:
“João, eu sei que você está
caprichando, mas será que poderia trazer meu livro amanhã? Minha prima do Rio
vai passar só este final de semana em casa e eu queria muito que ela escrevesse
para mim também...”
Não tinha mais jeito. Precisava
ser naquela sexta-feira.
Tio João olhou para mim e sorriu:
“Então, depois de uma noite sem
sono, fui para escola e, antes de começar a aula, caminhei firme e entreguei o
livro pra ela: ‘Não abra agora, por favor. No recreio você me diz o que achou.’
Esperei ansioso o intervalo e assim que tocou o sinal ela veio na minha
direção. Veio séria, olhando para mim. Por um instante tremi, mas não abaixei a
cabeça. Ela chegou, me deu um beijo
muito terno no rosto. Depois sorriu: ‘Joãozinho, é a coisa mais linda que eu já
recebi na vida. Nunca vou esquecer você. Obrigada.’ E saiu, com a lágrima
pendurada em algum canto do mundo, me deixando apenas o sorriso. O sorriso que
palmilhou o meu destino.”
Fiquei ali, esperando que ele
reabrisse o livro. Que ele me dissesse logo o que a menina tinha visto.
Então ele me revelou todos os
mistérios do oceano.
***
Mas antes de revelar todos
aqueles mistérios, tio João guardou suspense e me olhou de canto, com seu
sorriso malandreado número 85,4 (talvez o mesmo sorriso de um menino que fazia
tranças nas crinas dos cavalos e no dia seguinte punha a arte na conta do saci). Só que eu continuei sem voz, sem um respiro,
esperando que o passado me invadisse. E no meu silêncio, o oceano se revelou:
“No canto, no único espaço não
coberto pela tinta azul dentro da moldura dourada, eu escrevi: QUE ESSA SEJA A ÚNICA PÁGINA MANCHADA DE SUA
VIDA. COM CARINHO, JOÃO BAPTISTA”.
Tio João me sorriu seu sorriso
malandreado número 94,3. E eu devolvi o
meu, encabulado e surpreso. E me esqueci da prova de Matemática. E me esqueci
de qualquer tristeza.
Mas passados tantos anos, ainda
me pergunto se toda aquela história seria verdadeira.
Teria realmente a menina recebido
tão bem aquela mancha em seu caderno precioso, mesmo que acompanhada por uma
frase inspirada? Ela teria convivido com
aquele oceano azul ressacando com tanta violência suas lembranças?
E de tanto pensar, chego a
duvidar da existência da menina. Da existência do caderno. E do pedido. E da
mancha. Do beijo. De toda historia, enfim.
Verdadeiro ou não, aquele relato
me consola e me enche de fascínio: se não é real, mostra o inegável talento de
tio João para contar histórias e enganar os desenganos.
Muitas vezes, reencontro aquele
enredo pelos caminhos tortuosos. Então, vislumbro possibilidades de corrigir
erros e endireitar estradas. Até consigo
reconstruir trilhas que pareciam perdidas para sempre. E acho que tio João também. Tanto, que já passou dos 90 anos e continua
forte, com seus muitos sorrisos. E suas muitas histórias.
E eu também: sigo imaginando e
historiando:
Imagino um apartamento num andar
alto de um prédio. Imagino um quarto. E
uma janela. E naquela janela, uma mulher, com seus 92 anos, que olha a cidade
grande se espalhando feroz pelas ruas cinzentas.
A mulher deixa a janela. Escuta
seus bisnetos brincando na sala, mas não presta atenção. Ela agora olha para seu quarto: a cama
arrumada, um quadro na parede, o criado-mudo, uma gaveta. Ela abre a
gaveta. Debaixo de alguns papéis e de um
cartão com um desenho infantil e a frase “para a vovó, com amor”, ela retira um
velho caderno. Mas não é um caderno comum: a capa de couro, adornada nos cantos
com plaquetas de metal dourado, mostra uma paisagem pintada por algum grande
artista, onde se destaca uma linda menina. Há ainda uma fechadura delicada que
só pode ser aberta por uma chave de ouro presa numa corrente finíssima também
de ouro. Por dentro, o livro é ainda mais
bonito: cada página, costurada à mão ao volume, possui uma moldura tecida com
filetes dourados. Em cada uma, letras
caprichadas, às vezes acompanhadas por desenhos, revelam textos doces e
carinhosos dedicados a alguém. De
repente, uma enorme mancha azul, um tanto desbotada, invade os olhos da
mulher. Ela afaga a página, a mancha e
uma pequena frase escrita com letra caprichada num dos cantos da moldura
dourada. Depois, volta a guardar o livro
na gaveta do criado-mudo, bem debaixo dos papéis e do cartão “para a vovó, com
amor”. As crianças brincam na sala,
enquanto a mulher leva seus 92 anos para janela da cidade grande que continua
se espalhando feroz pelas ruas cinzentas.
Tudo se resolve.
Tudo.
Talvez menos a saudade
acabrunhando a alma.
E o amor querido, mas não
realizado.
Ilustração: Erasmo Spadotto – cedida pelo Jornal de Piracicaba
Publicado no Jornal de Piracicaba em 8 e 23/5 e 6 a 20/6/2016
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