sexta-feira, 29 de abril de 2016

Amadores

(caio silveira ramos)

Tio Amador era irmão da minha avó Jandyra.  Ele trabalhava no Jardim Botânico do Rio de Janeiro e morava com a esposa e os dois filhos numa das casinhas que eram reservadas para os funcionários.  De quando em vez vinha para São Paulo: na Capital, visitava a mãe, dona Sebastiana, e suas irmãs e irmãos. Em Jundiaí, a irmã Zezé e a sobrinha Josette.  E em Piracicaba, as sobrinhas Maria da Glória e Jandyrinha, que se assemelhava à mãe não só no nome, mas também no amor pelas plantas.
Ele chegava sempre risonho, com o cabelo muito crespo e branco cortado bem curto, os óculos de aro escuro e quadrado, e o corpo baixote e gorducho. Às vezes aparecia de chapéu de palha.  Mas sempre vinha com um pacotinho de papel pardo, lotado de “Balas Chita” para a molecada.  Eu adorava as de embalagem amarela – acho que de abacaxi ou de tutti frutti –, mas não dispensava as de menta, caso no meio viessem também as empacotadas em papel verde.    A primeira criança da casa que aparecesse (e era quase sempre eu quem abria a porta) recebia o sorriso e o pacote, mas as balas eram imediatamente oferecidas aos mais velhos (e, por sorte, recusadas), e fraternalmente repartidas entre os pequenos. 
Tio Amador adorava papear com meus pais sobre os parentes, o Jardim Botânico e as plantas.   Em todas as visitas, não deixava de demonstrar seu encantamento por minha mãe ter feito florescer o “Bastão do Imperador” nos fundos da casa: “o Hélio, melhor agrônomo que eu já vi, mesmo naquela belezura de terra roxa dele, jamais conseguiria Bastões tão saudáveis e bonitos quanto esses que iluminam seu quintal, Jandyrinha!  Só sendo filha da mana Janda para ter essa mão pra natureza!”  E ficava lá, um tempão no quintal, namorando aquela flor misteriosa de caule grosso e bulbo majestoso, avermelhado, parecendo mesmo um cetro real.
Depois, ou Tio Amador almoçava em casa ou pedia para meu pai levá-lo de carro a algum dos restaurantes da cidade “para comer uma feijoada ou um peixinho, sem dar trabalho para a Jandyrinha”.  Entrou para o folclore da família a história que meu pai contava às gargalhadas: enquanto saboreava uma suculenta feijoada, tio Amador espirrou forte e a dentadura caiu dentro do prato.  Sem qualquer cerimônia, ele resgatou a dita do meio da comida, deu-lhe uma leve espanada com os dedos para retirar alguns grãos de feijão, meteu-a de novo na boca e tranquilamente voltou a comer satisfeito.
O que me intrigava é que, depois desses almoços, meu pai voltava sozinho para casa. Questionado, seu Miro sorria com os olhos e dizia apenas que tio Amador gostava de dar uns passeios sozinho.
Já um pouco mais velho, perguntei novamente a meu pai sobre aqueles antigos passeios do tio.  E ele respondeu gaiatamente mais uma vez: “seu Amador saía por aí porque gostava de ver moças bonitas e conversar com elas”.
Me dei por satisfeito com a resposta e pensei lá comigo que tio Amador tinha sido um sujeito feliz. 
E que eu queria ser um amador também.

***

Até meus oito, nove anos, eu e minhas irmãs fomos alegremente abastecidos pelas “Balas Chita” trazidas pelo tio Amador.  Mas ele não aparecia apenas com o pacotinho de balas para as crianças: dos seus bolsos, tio Amador tirava sementes de todos os tipos e tamanhos, e as distribuía para quem se interessasse por plantas.  Eu que naquela época tinha descoberto a história d’ “O menino do dedo verde”, de Maurice Druon, achava que tio Amador também tinha o “dedo verde”: ele devia ser uma espécie de mágico, que ia derramando suas sementes pelo mundo. E delas brotavam as flores mais exóticas, as plantas mais misteriosas, que se espalhavam por quintais e varandas. E que de repente até poderiam sair pelas frestas dos muros e do mundo.
Eu já devia ter uns onze anos quando fui com meus pais passear na casa da tia Josette, em Jundiaí.  Uma casa cheia de sol e som, com primos e primas crescendo junto com a gente lá de casa, todos mais irmãos que simples parentes.  Além do encontro das famílias, o passeio tinha também dois grandes motivos: uma visita ao tio Amador, que muito doente passava uns dias na casa da sobrinha Josette. E o abraço numa coleção de pedras.
O primo Renato, o segundo filho mais velho da tia Josette, foi um dos meus heróis de infância: curioso e inteligentíssimo, passava horas estudando no quarto que dividia com o irmão Roberto.   Quando tio Sammy construiu o “predinho” nos fundos da casa, Renato passou a ter um quarto de estudos, de onde, para mim, ele saía muito raramente.  Um quarto de estudos com a porta sempre aberta, o que me permitia, mesmo de longe, espiá-lo pesquisando ou tocando flauta doce. Um quarto cheio de livros, com uma dessas mesas de engenheiro (provavelmente para o irmão desenhar os projetos para a faculdade) e um jogo de lentes chamado “Poliopticon” (cuja caixa eu namorava secretamente quando passava pela vitrine da “Gatti Ótica”, na esquina da rua Governador com a Moraes Barros).
Mas Renato nunca bancou o geniozinho chato, muito pelo contrário: conversava mansamente, não se negando a compartilhar seu vasto conhecimento com quem quer que fosse. Inclusive comigo, um primo quase dez anos mais novo, que olhava para ele fascinado como se estivesse diante do próprio Professor Pardal.  Pois quando saía do quarto de estudos, Renato aparecia com seus inventos: uma câmara fotográfica feita de papelão e fita adesiva, com disparador, visor e tudo mais. Ou um despertador de corda, que em vez soar estridente, acendia uma lâmpada quando dava o horário para acordar o sonhador. 
Eu, mesmo acordado, sonhava em ter um telescópio. Generosamente, Renato me deu duas lentes para que eu construísse meu brinquedo: fucei aqui e ali e, com dois tubos de papelão, fiz minha luneta regulável que conforme a distância permitia o ajuste do foco. Feliz da vida, achei que meu primo ficaria orgulhoso de mim. 
Mas quando fui mostrar a ele minha geringonça (e aproveitar para perguntar como se fazia para as imagens não se serem vistas de ponta-cabeça), o primo Renato já tinha voado para bem longe e se tornado professor de uma universidade americana.  Foi ensinar a novos amadores a beleza dos números que viajam por trás dos mistérios do Universo.
Isso foi bem depois. Naquele dia da visita, já que eu andava todo interessado em fazer uma coleção de pedras, ele me deu de presente vários exemplares incríveis para eu não começar do zero.  E com o pensamento cravado nas pedras e cristais que tinha acabado de ganhar do primo Renato, fui cumprimentar o tio Amador, que estava ocupando uma das camas lá no quartão das minhas primas.
Acho que ele não me reconheceu direito. E eu também quase não o reconheci de pijama listado de mangas compridas e com o cabelinho crespo muito branco.  Os olhos miúdos sem os óculos pareciam infinitamente tristes.  Era um tio Amador sem pacotes de balas nas mãos, sem sementes brotando dos bolsos, sem sorriso cantando na boca. 
Parecia que, de repente, a terra e a vida também tinham se transformado em pedra. Não como aquelas cheias de beleza e mistério da minha nova coleção.  Mas como pedras secas, duras, que agora se negavam a beijar os dedos verdes de um amador inveterado.

***
Eu e meu pai fomos passear no Rio de Janeiro e aproveitamos para visitar a família do tio Amador, que já tinha falecido fazia quase quinze anos. Por todo o caminho, cortando por dentro do Jardim Botânico, tive a impressão de que a qualquer momento eu o veria espalhando suas sementes ou espiando por entre as árvores, feito um curupira protegendo sua mata. 
Seus filhos tinham a idade das minhas tias mais novas: ele, muito parecido com o pai, só que quieto e com o olhar mais distante.  Ela, o sorriso e a ternura de tio Amador.
Já a viúva, se parecia não ter ternuras, com certeza tinha perdido todos os seus sorrisos.  Nos olhos, nos cabelos pretos muito lisos presos num coque e em cada vinco do rosto se embrenhava uma secura que parecia ter rompido há séculos. Não havia um olhar, um movimento de boca, uma palavra que não rimasse com a mais palpável amargura.
Dei para emparelhar as figuras ou para desentender o emparceiramento desenhado no passado: como podiam aqueles dois ter um dia se conhecido, se apaixonado, se casado e criado filhos sendo tão diferentes? Disfarçaria, ela, toda a alegria? Teria ele me enganado todo o tempo, escondendo igual amargor atrás de um pacote de “Balas Chita”?
Pensei que atrás daquele fel talvez ela escondesse as saudades dele, mas já desconsiderei: não se fisgava nela qualquer indício de falta acabrunhada. Ela reclamava do passado, do presente e da possibilidade de futuro.
Fui por outros caminhos: teria ele se espalhado, igual a suas sementes, para não vislumbrar as amarguras dela?  Ou teria ela se amargurado com a largueza da alegria apaixonada dele? Ou será ainda que eles teriam de comum acordo (re)partido ao meio a palavra “amador”, ficando ele com a melhor parte e ela apenas com a rima pobre?
Mas já no caminho de volta percebi que o amador era eu. Eu que do alto dos meus vinte e quatro anos tinha a certeza de já conhecer todos os meandros das paixões avassaladoras.  Eu que julgava implacavelmente os certos e os errados dos relacionamentos conjugais e afetivos.  Eu. Eu, que condenava traidores e traídos, compreendi que do amor só conhecia a superfície. Era um amador no entendimento dos amores alheios e próprios.
E hoje, passado tanto tempo, continuo reconhecendo meu amadorismo e humildemente me visto com a poesia do velho Carlos para repetir: amar se aprende amando.
E amando, e aprendendo, vou me tornando cada vez mais amador.
Simplesmente um amador.

Ilustração: Erasmo Spadotto – cedida pelo Jornal de Piracicaba
Publicado no Jornal de Piracicaba em 13 e 27/3 e 10/4/2016



Doçura enviada pela leitora Dilma Spigolon Ferreira (abril/2016)


2 comentários:

  1. Adorei , Caio. Tenho muitas e doces lembranças do tio Amador também!

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  2. Muito bom seu relato, Caio, mostrando muito poder de observaçao.Realmente o casal era muito dispar,e Amador muito cuca fresca, como bom carioca que praticamente era. Muito triste, mas ele era só alegria, parece.

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