Quando nasci, um
anjo torto desses que vivem de sombra e água fresca resolveu fazer cosquinhas
na cabeça da minha irmã Raquel, que deu para cismar que já não era mais a
pituquinha do pai. Na verdade, nada mudou muito na família, a não ser pelos
cuidados normais que um bebê recém-nascido provoca numa casa que já tem três
meninas de 4, 6 e 8 anos. Mas passado
tanto tempo, Raquel se culpa profundamente por coisas que toma hoje como
grandes maldades que teria feito comigo para tentar recuperar seu reinado. Eu acho muita graça nessas lembranças, assim
como me divertia com tudo que ela fazia na época.
Me divertia com
tudo... Pensando bem, menos com uma coisa.
Raquel devia ter
cerca de oito anos quando ganhou dois “Discões”. O tal “Discão” era uma reunião, num mesmo LP
de doze polegadas, de várias histórias da clássica “Coleção Disquinho”. Produzida pela gravadora Continental, a
Coleção apresentava, numa série de compactos coloridos, fábulas e contos de
fada narrados por meio de textos recheados de rimas e de canções ricamente
orquestradas que se tornaram muito populares nas décadas de 1960 e 1970.
Pois num
daqueles LPs, Raquel descobriu esfregando as mãozinhas, que a história d’ “A
bela adormecida” me botava um medo de tapar os ouvidos e implorar: “tira, tira,
tira isso!”
A questão toda
não estava na história em si, mas na bruxa que aparecia logo no começo jogando
a maldição do sono eterno sobre a princesa ainda bebê. E depois, lá pelo meio
do disco, ainda cantava a terrível “Canção da velha fiandeira” –
“lalilalá-lilalá-lilalá, girando, girando, não paro de girar, trabalho,
cantando, na roda de fiar” –, que atraía a jovem princesa para espetar seu dedo
no fuso da roca e dormir por cem anos.
Eu já tinha
pavor de bruxas, mesmo antes daquele disco.
Pelo que lembro, todas as vezes em que voei para o meio da cama dos meus
pais durante a madrugada, a causa foi sempre a mesma: os terríveis pesadelos
com bruxas. E bruxas antropófagas.
Talvez só Freud
possa explicar esses meus terríveis sonhos de infância com bruxas tentando me
devorar. Só Freud. E talvez uma amiga de
Dona Marica, que de vez em quando aparecia para ajudar a passar roupa e contar
tenebrosos contos de bruxas para a molecada.
Não, a culpa não é dela: eu já tinha pesadelos com bruxas antes. Ela só
me deu um empurrãozinho para dentro da casa de doces e me emprestou o ossinho
de frango para tentar iludir a faminta feiticeira. Bem, talvez a culpa seja dos
irmãos Jacob e Wilhelm Grimm. Mas só Freud mesmo pode explicar.
A bruxa do
desenho de Walt Disney era má, mas tinha estilo e certa beleza exótica. No filme “Malévola”, ela se mostra ainda mais
bela, afinal é interpretada por Angelina Jolie, que se estivesse menos magra
estaria ainda mais estonteante. Mas, ah,
me desculpe, ela é no fundo boa e injustiçada.
Bruxa tem que ser bruxa, e aquela do disco da Raquel, só pela voz, já
diz para que veio. Ela é
irresistivelmente má e sarcástica. E
deve ser velhíssima, muito feia e cruel. E com um rancor medonho que já se
revela na fala inicial: “não me convidaram, no entanto eu vim. Mesmo assim”.
Raquel percebeu
meu “glup”, assim que ouvi aquela frase. E lá pelo meio do disco, enquanto a
voz do canto da bruxa crescia na medida em que a jovem princesa se aproximava
do porão, eu ia parar embaixo da escrivaninha do meu pai. E minha irmã
descobria que tinha o poder.
E que dali em
diante, estava de novo no comando.
***
Carlos Alberto
Ferreira Braga, o Braguinha foi um grande compositor da música brasileira. Quando formou o “Bando de Tangarás” com
Noel Rosa, Almirante, Henrique Brito e Alvinho, passou a adotar também o
pseudônimo “João de Barro”. Mas
qualquer que fosse o nome usado, ele não abria mão do talento criador, tanto
que, além de escrever a letra de “Carinhoso” para a melodia de Pixinguinha, foi
um dos reis das marchinhas de São João e de Carnaval (com seu estilo
“antropofágico-pré-tropicalista”), e também precursor da Bossa Nova. Sozinho ou com parceiros, compôs clássicos do
calibre de “As pastorinhas” (com Noel), “Copacabana” “Balancê”, “Touradas em
Madri”, “Yes, nós temos bananas”, “Chiquita Bacana”, “Capelinha de Melão” (as
seis com Alberto Ribeiro), “A saudade mata a gente” (com Antonio Almeida),
“Pirata da perna de pau”, “Vai com jeito” e muitos outros.
Quando o
longa-metragem de Walt Disney “Branca de Neve e os sete anões” chegou ao
Brasil, Braguinha participou ativamente da dublagem e também compôs as letras
em português. O mesmo aconteceu com
outras produções da Disney como “Pinóquio”, “Dumbo” e “Bambi”. Assim, não é de se espantar que ele
estivesse à frente da produção da “Coleção Disquinho”, da gravadora
Continental, na década de 1960. Além
de adaptar alguns dos mais fantásticos contos infantis de todos os tempos, ele
compôs várias canções para aquelas histórias, o que imprimiu à série um sabor
gostosamente brasileiro (e novamente “antropofágico”). Só para lembrar, são
dele as canções “Pela estrada” (“pela estrada fora eu vou bem sozinha, levar
esses doces para a vovozinha”) e “Lobo mau” (“eu sou o lobo mau, lobo mau, lobo
mau, eu pego as criancinhas pra fazer mingau”), de “Chapeuzinho Vermelho”. Canções tão enraizadas na nossa imaginação,
que até nos parecem hoje de autoria desconhecida e popular.
Além de
escrever, adaptar e compor, Braguinha conseguiu atrair para a “Coleção
Disquinho” gente talentosa de todas as áreas: dubladores, narradores
(principalmente narradoras, como Sônia Barreto, Simone Moraes e Nely Martins),
orquestras, compositores, autores, roteiristas, todos de primeira linha. Para se ter uma ideia, as músicas receberam
arranjos e regências dos míticos Radamés Gnattali, Francisco Mignoni e Severino
Araújo.
Entre os bambas
escalados por Braguinha, estava a professora de música, compositora e escritora
Elza Fiuza. E foi Elza quem adaptou
para o “disquinho colorido”, “A bela adormecida”. E foi Elza quem criou os diálogos todos para
aquela história. Inclusive as terríveis falas da bruxa e a canção da velha
fiandeira que tanto teimavam em frequentar meus pesadelos.
Estranhamente,
porém, de tanto minha irmã Raquel colocar o disco para rodar na vitrola, fui
perdendo o medo de bruxas e daquela faixa.
E fui, sem saber por que, me apaixonando por aquela canção anteriormente
tão assustadora.
Muitos anos
depois, enfeitiçado pela voz de Clementina de Jesus, compreendi meu fascínio
por aquela música.
E descobri que
havia muitas outras bruxas em meu caminho.
***
Trabalhei
durante dez anos com F. Baruq e, apesar dos angelicais olhos azuis, ela é
daquelas que perde o amigo (e qualquer parente), mas não perde a piada. Por ser um dos seus alvos preferidos – ela
não perdoa qualquer deslize do meu daltonismo – acho que F. Baruq gosta de mim
como de um parente próximo. Daí porque
não sei o que me deu na cabeça de contar a ela a história dos temores profundos
que eu sentia quando minha irmã Raquel colocava para rodar na vitrola a cantiga
da velha fiandeira “interpretada” pela bruxa do disquinho d’“A Bela
Adormecida”: “fiando, fiando não paro de fiar...”.
Pois F. Baruq
arranjou a gravação em meio digital e passou a repetir a cantiga sempre que uma
oportunidade surgia. E mesmo quando não tinha a gravação por perto, cantava
para me provocar, “fiando, fiando”, ainda que tenha descoberto que o correto
era “girando, girando, não paro de girar”.
Para entrar na brincadeira, eu recriava meus medos antigos e quase me
metia embaixo da primeira mesa que aparecesse.
A palavra “fiando” virou entre nós um verdadeiro código de falsas
ameaças e zombarias inocentes. E o auge
da brincadeira aconteceu em um 31 de outubro, durante o aniversário de uma
amiga: quando entrei no apartamento em que ocorria a festa, F.Baruq e outra
colega, ambas usando vistosos chapéus de bruxa, entoaram “fiando, fiando” entre
risos e letras alteradas cheias de graça. Mais uma vez entrei na brincadeira e
simulei sustos e traumas. Mas a verdade é que há muito tempo eu não temia mais
a música. Pelo contrário: sentia uma profunda emoção ao ouvi-la.
Desde menino eu
conhecia a figura de Clementina de Jesus, mas foi somente durante minhas
peregrinações pelos sebos de discos, nos intervalos das aulas de Direito, que
me dei conta da sua grandeza. Quando
encontrei o LP “Clementina de Jesus”, de 1966, entre tantos deslumbramentos –
começando pela capa –, me encantei com a singeleza de um cântico folclórico
natalino de pastoril chamado “Vinde, vinde companheiros”. O “laialaiá” da “Rainha Quelé” se iniciava
ao longe, como que chamando docemente os pastores e as pastoras. E o canto
crescia, crescia, ainda muito doce, como se todos se aproximassem ternamente
para ver o Menino nascido.
Emocionado, me
veio de repente outro laialaiá distante, que foi chegando, chegando sem
medo. Intrigado, me dei conta que quem
se avizinhava era aquela antiga canção da bruxa de “A Bela Adormecida”, que
também se iniciava com uma voz envelhecida e distante. E que depois crescia e
atraía a princesa para os porões do palácio.
Mas o canto que agora chegava e me tomava pela mão e pelos ouvidos nem
de bruxa mais era. Era um “canto de trabalho” entoado por uma velha fiandeira
de um Brasil rural e profundo, semelhante a tantos outros cantos espalhados por
Clementina. Vozes velhas, distantes, embolando aspereza, doçura e
encantamentos:
Girando, girando
Não paro de girar
Trabalho, cantando,
Na roda de fiar
A velha fiandeira
Trabalha sossegada
A noite inteira
Na roda encantada
Girando, girando...
E girando,
girando, aquela cantiga não vinha mais até mim nascida dos porões de um palácio
de uma Europa medieval. Girando,
girando, o canto da velha fiandeira - criado pela sabedoria dos ouvidos e da
imaginação de Elza Fiuza – se misturava à voz sagrada de brandura e desespero
de Rainha Quelé e brotava de outros porões, de outros pesadelos, de medos e
pavores concretos gravados na carne. Aquelas vozes envelhecidas e torturadas
revelavam um país gestado nos porões dos navios negreiros, onde as bruxas eram os
próprios homens. Onde não apenas as pontas dos dedos eram feridas, mas o corpo
todo.
Onde o sono se
chamava morte.
Ou um pesadelo
que durou muito mais que cem anos.