sábado, 20 de junho de 2015

Zorro, Pitanga e as coisas boas da vida

(caio silveira ramos)

Achei que ainda estava sonhando, mas elas estavam ali sobre a cadeira da copa: uma máscara e uma capa pretas.  Minha mãe tinha costurado escondido enquanto eu dormia e agora eu podia salvar o mundo.  A máscara se ajustava facilmente com o lastex.  A capa se fechava com um laço também preto, mas minha mãe tinha camuflado um botão de pressão para que Zorro pudesse facilmente voltar a ser Dom Diego e escapar do Sargento Garcia sem ser descoberto.  
Peguei o velho chapéu de feltro do Vô Sylvio, montei no cavalinho de pau com roda e cabeça de plástico, tirei da bainha laranja a espada azul, e finalmente fiquei pronto. Zorro ficou pronto.  Pronto para enfrentar os tiranos. 
Eu era fascinado pelo Zorro e não perdia um capítulo da série da Disney feita no final da década de 1950 (que, para minha sorte, era reprisada ali no meio da década de 1970).  A abertura com o ator Guy Williams – também famoso como Professor Robinson, “o pai de Perdidos no Espaço” - andando pelos telhados e empinando seu cavalo sob o luar, vivia pulando para dentro dos meus sonhos.  E no dia seguinte, eu já acordava pronto para montar em Tornado e sair pelo mundo tirando dos ricos para dar aos pobres.
Só que Tornado perdeu a roda e foi ficando pequeno para mim.  Rodinhos e cabos de vassoura não eram a mesma coisa.  E eu começava a correr o risco de assobiar e Tornado já não aparecer para minha fuga.
A coisa piorou quando eu andei num cavalo de verdade. Eu tinha uns oito anos, o sol ainda estava nascendo e só por me aproximar do pangarezinho, meu coração disparou ligeiro. Mas foi só o coração que disparou, porque o cavalo era manso e paciente.  Já tio Nelico não era muito: quando me viu segurando a rédea com as duas mãos, pegou firme na correia, dobrou-a ao meio, agarrou minha mão direita com sua delicadeza habitual e disse docemente: “viu muito filme americano: caipira segura assim, fio-de-um-burro!”.  Não sei se de emoção ou de medo, mesmo sendo o cavalinho manso, disfarçadamente usei a mão esquerda livre para segurar o santoantônio da sela.  Mas aos poucos, o bicho foi me amansando: a ventania da crina cutucando meu rosto, o pelo curto roçando carinhoso a palma da minha mão, a segurança do lombo me aninhando as pernas em arco.  O trote suave fazendo os couros da sela chiarem roque-roque no meu ouvido.
Segurando a rédea de Tornando com uma só mão, o zorro caipira se iluminou de sol.
E sem medo, saiu pelo mundo para enfrentar os tiranos.

***

Tio Hélio tinha sido agricolão famoso, conhecido como Soscândio.  Mas agora, até para muitos da família, ele era o “Doutor Hélio”, amante a tal ponto de cada grão germinado no seu sítio em Cândido Mota, que, seguindo sua lida e paixão, dos nove filhos que ele e tia Lia tiveram, cinco atravessaram o Estado para estudar na ESALQ. 
Naquele dia, tio Hélio atravessou também o Estado para acompanhar a formatura de um daqueles filhos ou participar de algum almoço de antigos alunos.  Eu brincava no chão da sala, quando ele perguntou: “é você que gosta de cavalos? Se for me visitar no sítio, eu arranjo um para você”.
O vozeirão, os quase dois metros do tio e a oferta me gaguejaram a fala e as ideias. Balancei a cabeça sim-sim e desandei a sonhar sem sono.  Quando tia Lia voltou dali a dois meses, disse que o tio tinha mandado perguntar quando eu iria tomar posse da eguinha. “Eguinha?”, me encantei, e a tia já me aumentou o feitiço, desenhando o ar com sua fala cheia de música enroscada de erres açucarados: “uma bretãzinha linda, vermelha, muito especial. Você precisa ver que graça”. 
Meu mundo se encarnou a partir daquele momento. Desandei a inventar nomes: “Relâmpago”, “Fogo”, “Raio”? Não, não, tudo muito masculino. “Trovoada”, “Faísca” não eram bons. “Estrela” era nome de vaca leiteira ou puxadeira de carro.  Mas quando comecei com nomes em inglês que pretendiam revelar a velocidade, a bravura ou a cor da eguinha sonhada, meu pai opinou: “acho que tem que ser um nome mais caipira, que lembre terra, cheiro de mato, roça”. Torci o nariz para a ideia e para as sugestões. Mas quando ele falou “Pitanga”, o suco do nome escorregou doce pelos meus ouvidos.
E Pitanga entrou em todos os meus filmes sonhados. Era Tornado, Silver.  Era Pégaso voando comigo pelo pátio da casa. No pátio, claro! Ela poderia viver ali, por que não?  Seu João Verdureiro não subia a Moraes Barros, poque-poque, com seu cavalinho puxando a carroça com os olhos embitolados, parando de casa em casa?  Pitanga também moraria na cidade.
                   Nas férias de julho, montamos nossa Brasília branca e fomos, eu e meu pai, em direção à Paraguaçu-Paulista, Assis e Cândido Mota: além da eguinha, vários parentes moravam naquelas bandas.   No caminho, ele tentou me dizer que um cavalo bretão servia mais para tração que montaria, mas eu só estava preocupado em perguntar a cada quinze minutos se faltava pouco para chegar.  E pacientemente meu pai dizia que sim.
                   No sítio do tio Hélio, catei noz-pecã e plantei uma árvore: o tio fazia questão que cada visitante cultivasse uma, e de todas, ele conhecia o nome científico, a função na natureza e, mesmo no futuro, o plantador. Depois, me abriguei na famosa casa feita de bambu-açu, que já tinha aparecido até no “Globo Rural”, descobri a acerola e tomei seu suco bem gelado, feito na hora pelo tio, que amassava a fruta com um vidro vazio de Nescafé. E ainda comi muita carambola verde graças ao meu daltonismo.
Por fim, descobri que minha eguinha já tinha nome.
Já tinha nome:
Ameriquinha.

***
Pitanga não era Pitanga. Era Ameriquinha.  Mas havia um motivo.
No sítio, os animais não eram amansados depois de crescidos: tio Hélio tinha trazido um método de doma americano, que pretendia acostumar os cavalos, desde pequenos, a celas, arreios e baixeiros, adaptados gradualmente ao tamanho dos animais.  Além disso, o tio tinha implantado um sistema que rapidamente o informava sobre a idade dos bichos, o que facilitava o controle da saúde da manada.  Ele estipulou um determinado ano como o “Ano A” e todos os bichos nascidos naquele período tiveram seus nomes iniciados com essa letra.  O ano seguinte foi o “B” e os animais nascidos nesse tempo tiveram tal letra como a primeira de seus apelidos. E assim por diante.  Só de ver um cavalo com determinado nome, tio Hélio já sabia a sua idade, se já tinha tomado os remédios e as vacinas, e se ainda podia continuar na lida.
Nascida no ano “A”, a égua América não negava a raça bretã: era gigante, vermelha e forte, uma verdadeira lenda no sítio. Por ser filha de América e nascida numa nova sequência de anos “A,B,C,D”, sua filha foi apelidada de Ameriquinha, devendo permanecer com esse nome pelos métodos racionais de administração do sítio. Havia uma lógica, e conformado, guardei o nome “Pitanga” dentro do bolso da camisa.
Antes de chegarmos ao estábulo, demos uma volta pelo sítio: tio Hélio era cavaleiro experiente e meu pai, menino de roça, parecia ter nascido em cima de um cavalo. Já eu, sacolejava para um lado e para o outro feito um fardo de batata.  O bicho, matreiro, percebeu que em seu lombo montava um caipira de asfalto.  E começou com suas malandragens: saía do caminho, raspava a lateral (e as minhas pernas) nas cercas que ladeavam a estradinha e passava de propósito no meio dos galhos mais baixos.  Eu puxava, acarinhava, conversava e ele parecia rir de mim. Perto da casa de bambu-açu, enquanto meu pai e meu tio apeavam com estilo, ele entrou pelo meio de um limoeiro grande e eu me arranhei todo.  Ninguém percebeu, consegui (a muito custo) escapar dos espinhos e, todo estropiado, entrei na casa sem um pio, mesmo que em pensamento praguejasse contra o tal método americano de doma.  E o danado do cavalo parecia continuar a rir de mim. Não, não parecia. Acho que ele ria mesmo.
Mas ele não deve ter rido quando me encontrei com a eguinha. Vi de longe, vermelhinha como eu tinha sonhado. E ela, além dos sonhos, tinha uma faixa branca adornando o focinho mimoso. Meu pai fotografou a bichinha ao lado de um cavalo branco. Depois, ela ao lado do tio. Então, finalmente entrei no cercado, com minha bota vermelha de borracha que eu usava para brincar de Super-Homem. Um cuidador da fazenda apareceu e a segurou com um laço feito de corda grossa para que eu me aproximasse sem susto. 
E eu estou lá na foto antiga, passando a mão esquerda com cuidado pela faixa branca do focinho da eguinha.
Não consigo me lembrar direito desse momento.  Me recordo do dia, do cheiro do sítio, do gosto do suco de acerola, dos arranhões do limoeiro, mas daquele instante, não me lembro bem. Sei que estive lá: a foto revela. Porém, vejo como quem vê de fora. Assim, distante.
Mas agora consigo me lembrar: estou lá, com minhas botas vermelhas de Super-Homem. Estou perto dela. O cuidador está do outro lado, segurando-a pelo laço para que ela não se assuste comigo. Eu acarinho o pescoço dela, amacio as mãos na crina vermelha como a terra daquele lugar.  Depois, quase sem tocar, passeio a ponta dos dedos na faixa branca: para cima e para baixo, sentindo a resistência serena dos pelos daquele focinho mimoso.
E me aproximando do ouvido da eguinha, sussurro cheio de doçura:
Pitanga, Pitanga, Pitanga...

***
Retornei exultante daquelas férias, mesmo não voltando para Piracicaba montado na eguinha Pitanga.  No fundo, sabia que a história de ganhar um cavalo de presente era mais um pretexto inventado pelo tio Hélio para que eu o visitasse nas férias. Mas a foto estava lá, quase viva, em um porta-retrato que coloquei ao lado da minha cama. E na foto estava Pitanga. E na foto, eu estava ao lado dela, com a mão acarinhando a faixa branca que escorria pelo seu focinho.
De tão feliz, dei para enumerar na cachola todas as coisas boas que estavam brotando na minha vida.  E cada vez que pensava em cada uma delas, me vinha um frio na barriga tão bom, que dei para desfiá-las em pensamento a toda hora.   Desfiava andando de bicicleta no quintal ou jogando bola no pátio de casa; desfiava caminhando com meu pai até a Escola Agrícola.  E também enquanto tomava garapa na volta para casa. E aguardando meu sorvete de limão na Paris.  E entre um acorde e outro, tocando violão para minha mãe quando ela fazia pão.   Ou observando a bolinha subir no copo com água, avisando que a massa já tinha crescido e podia ir para o forno.
As coisas eram tantas e tão boas, que às vezes me esquecia de uma ou outra.  Com medo de que o frio na barriga se perdesse, passei a anotar nos dias já esquecidos de uma agenda velha, listas para recordar quando precisasse.  Uma delas era mais ou menos assim:
- Pitanga
- nasceram dois peixes no aquário
- a bola de capotão voltou do telhado (um pedreiro subiu e encontrou)
- aprendi a tocar Carinhoso no violão
- o Palmeiras ganhou o campeonato de futebol de salão 
- li Os Doze Trabalhos de Hércules do Monteiro Lobato em três volumes emprestados pela tia Zette.
Já adolescente, fui visitar tio Hélio no seu sítio.  Reencontrei a casa de bambu-açu, tomei suco de acerola, comi carambola verde.  Mas não vi a eguinha Pitanga.  Tio Hélio já devia ter se esquecido da história e eu acabei não comentando nada com ninguém. Disfarçadamente, no entanto, cada animal que avistava, eu tentava encontrar a cor de Pitanga se misturando com o pasto, com as cercas, com os caminhos. Mas parecia que ela tinha se desmanchado no céu entardecido ou na terra que grudava grossa na sola de cada bota.
Ontem, porém, enquanto apertava o nó da gravata, pela janela avistei uma Pitanga madura estacionada no meio-fio. Assobiei, ela me fez um aceno com a cabeça me convidando para um passeio, mas resolvi não montá-la pulando do 17º andar.
Desci, cumprimentei o porteiro, saí do prédio e ela ainda estava lá me esperando: os pelos ainda vermelhos estavam um pouco falhos aqui e ali. Uma brancura suave morava na ponta dos cílios compridos.  Mas o cheiro bom ainda era o mesmo. 
Cachoeirei os dedos pela faixa branca do focinho e ela me inclinou a cabeça.  Sussurrei manso no seu ouvido “Pi-tan-ga”  - como sugere a poeta-amazona Marina Mendes –, e fomos caminhando lado a lado pela rua cheia de carros.  Tal qual um filme do Trinity, dividimos um sanduíche e conversamos sobre o tempo velho, o tempo novo, o tempo-tempo.  E me dei conta de que tudo aquilo que eu fazia distraidamente enquanto enumerava na cabeça “as coisas boas da vida”, lá na década de 1980, gerava um frio na barriga ainda maior que aqueles itens que acabaram anotados na agenda. Bom mesmo, de verdade, era andar de bicicleta, jogar bola, caminhar com meu pai até a Escola Agrícola, tomar garapa na volta para casa, aguardar meu sorvete de limão na Paris, tocar violão para minha mãe enquanto ela fazia pão. E até observar a bolinha subir no copo com água, avisando que a massa já tinha crescido e podia ir para o forno. 
E me dei conta ainda que, tão bom quanto um dia ter fingido ser dono de um cavalo vermelho, era sonhar eternamente com uma eguinha chamada Pitanga.
Pi-tan-ga.
E o caldo suave da fruta me escorreu manso pelo pensamento.

Ilustração: Erasmo Spadotto e Maria Luziano – cedida pelo Jornal de Piracicaba
Publicado no Jornal de Piracicaba em 8 e 22/5 e 5 e 19/6/2015