(caio
silveira ramos)
“Caso do
vestido” sempre foi para mim um belíssimo poema de Carlos Drummond de
Andrade. Ou, quando muito, me fazia
lembrar o imbróglio em que se meteu o presidente americano Bill Clinton, na
década de 1990. Mas se você está lendo esta crônica no futuro, talvez vá se
lembrar da foto de um vestido listado que circulou pela internet e causou
discussões no final de fevereiro de 2015.
A foto foi
tirada na Inglaterra e rapidamente ganhou o mundo: alguns diziam que enxergaram
o vestido com as cores branca e dourada. Outros, azul e preta. Psiquiatras e
neurocientistas rapidamente explicaram que as diferenças de percepção das cores
se davam por causa da maneira como o cérebro tenta compensar a variação da luz
que entra pelos olhos.
Humildemente
penso em causas que também colaboraram para as “miragens”: além do ângulo em
que foi tirada a foto e a consequente incidência da luz – em foto posterior,
tirada de outro ângulo, o vestido se mostrou de forma inequívoca como preto e
azul -, as diferentes qualidades das telas dos diversos aparelhos eletrônicos
em que as imagens foram visualizadas e até a distância e a posição (frontal ou
“meio de lado”) que as pessoas olharam para a foto em seus celulares, tablets, computadores e TVs, levaram às
diferentes visões. Isso sem contar que
muitas vezes, na mesma página de um “site”, a “foto original” foi apresentada
no início da matéria de um jeito e, já no meio, de outro (às vezes mais escura,
às vezes mais clara). E o que é pior: diante de matérias que apresentaram
simulações (muitas vezes sem legenda) que aumentavam as saturações das cores
(deixando as existentes mais fortes) e revelaram três fotos (uma com a cor
original e as outras duas “pendendo”, uma para o dourado, e a outra para o
azul), as pessoas ficaram ainda mais confusas. Teve quem se perguntou: “mas
como? Agora são três os vestidos?”...
A curiosidade é, na maioria das vezes, uma
qualidade humana. E é até louvável
quando leva à busca por explicações científicas. Mas a repercussão da foto do
tal vestido me surpreendeu por dois motivos: o primeiro, é que sou daltônico e
sempre enxerguei as cores de maneira diferente da maioria das pessoas. O que haveria de novo nisso? De certa forma,
o espanto resgatou um pouco da dignidade dos daltônicos do mundo inteiro, que
tantas vezes foram caçoados por não conseguirem enxergar um simples arco-íris
ou os efeitos 3D de um filme de aventuras.
A segunda razão
da minha surpresa é que, na mesma semana em que o tal vestido ganhou o mundo e
as conversas, outras imagens caminharam pelos olhos dos povos, mas com menor
interesse, bem menos alarde e sem a avidez e o espanto causados pelas cores
mutantes.
Artefatos históricos
(principalmente estátuas datadas do séc. VII a.C.), abrigados por um museu em
Mossul (Iraque), foram destruídos a golpes de marreta e outros instrumentos por
integrantes do grupo fundamentalista “Estado Islâmico”. Mas as imagens da
destruição foram vistas com tal naturalidade pelo mundo, que constatei que o
“daltonismo” humano insiste em enxergar o ignóbil com as cores mornas da
banalidade. Sob alegação de idolatria e
adoração, os militantes do grupo – que na semana anterior tinham queimado 8 mil
livros e manuscritos (alguns datados de até 5.000 a.C.) da biblioteca pública
de Mossul, e que comumente se orgulham
em exibir vídeos com as decapitações daqueles que não compartilham suas ideias
-, destroem parte da História humana baseados na intolerância.
Enquanto o mundo
se espanta com as cores de um vestido.
***
Foi num fim de
tarde. Num fim de aula. Na pré-escola:
Eu me descobri
daltônico.
Já tinha
desconfiado de algo estranho ao pintar uma árvore: mas afinal, com qual
daqueles lápis eu deveria pintar o tronco? E a copa? Eu sabia que a copa deveria ser verde e o
tronco marrom: mas qual era o verde? O que era afinal “marrom”? Achava que não tinha aprendido as cores
direito: eu ficava entre dois ou três lápis, mas para mim eram praticamente
iguais. E o que é pior (embora não soubesse expressar isso): meu cérebro, meus
olhos não conseguiam encontrar as próprias definições daquelas cores. No fundo eu sabia que aqueles lápis não eram
amarelos ou azuis: eles pareciam ser verdes. Ou marrons. Eu também sabia que
estava chegando perto: mas parava por aí. Distinguir entre as duas cores eu não
conseguia.
Então, naquele
final de tarde chuvoso da pré-escola, se desenhou um arco-íris. Não no céu, mas
na folha em branco que estava sobre a minha mesa. Mas além de desenhar, era necessário pintar o
arco-íris. E as cores foram fugindo dos
meus olhos, escapando das minhas mãos. E começaram a se estranhar no
papel. Azul ou roxo? Laranja ou verde
claro? Verde escuro ou marrom? Olhei para o resultado: seria aquilo? Não devia
ser (pelo menos era o que revelava o silêncio intrigado dos meus coleguinhas de
mesa). Um doloroso nó colorido nasceu na minha garganta. A aula terminou, entreguei o trabalho para a
professora e quando vi minha irmã Ester me esperando no corredor em frente à
porta da sala, a chuva lá de fora escorregou para dentro e desmanchou o
colorido do nó. Que mesmo assim teimou em escorrer transparente pelo meu rosto.
No caminho de
volta, Ester – sábia já nessa época - me aconselhou a não me preocupar: a professora
saberia enxergar meu arco-íris com outros olhos. Mais ou menos como eu tinha
acabado de fazer.
Descobri naquele
dia que meu problema não era de aprendizado, mas sim um distúrbio de origem
genética chamado daltonismo. E que
alguns dos meus primos do lado materno também eram daltônicos. E que
provavelmente também tinha sido daltônico meu avô. E também meu trisavô (que
talvez por isso não variasse muito as cores do terno).
Exceto por
aquelas primeiras experiências na pré-escola, nunca tive grandes problemas por
causa da minha confusão com as cores. De
quando em vez, a não percepção de diferenças cromáticas em mapas, quadros,
textos grifados e até em roupas me colocou em situações apenas curiosas. Mas nada disso me atrapalhou de fato e
realmente penso que não me embaraçará. A
não ser que eu ainda queira ser piloto de aviões - que deve lidar com inúmeros
botões coloridos – ou talvez um espião internacional que, para salvar o mundo
de uma catástrofe sem precedentes, terá que optar entre cortar um fio verde ou
um marrom. Ou entre um azul-marinho ou um roxo.
Por esses dias,
recebi a notícia de que o engenheiro americano Don McPherson, especializado em
pesquisa de lentes, teria desenvolvido uns óculos que corrigiriam as distorções
do daltonismo. Achei muito interessante
e assim que tiver oportunidade vou querer experimentar os tais óculos. Mas não irei muito além de uma única
experiência.
O daltonismo
marca minha visão como um eterno lembrete, uma tatuagem que não me deixa
esquecer que, assim como existem diferentes maneiras de ver as cores, há
diferentes formas de entender o mundo, de interpretá-lo: e não estão aí
justamente algumas das razões e dos muitos sentidos da arte?
E se não bastasse esse encontro com a arte,
a percepção constante da existência das diferentes visões de mundo revelada
pelo daltonismo me prepara para respeitar as diferentes ideias, refletir sobre
elas e até modificar as minhas próprias.
Assim, mesmo discordando da ideia alheia, sei da impossibilidade de
qualquer tipo de imposição da minha vontade, porque é justamente a simples
existência de pensamentos contrários e livres que garante a sobrevivência dos
meus pensamentos. E a liberdade de
expressá-los.
Quase
paradoxalmente, o daltonismo me encara todos os dias para me fazer abominar
qualquer tipo de preconceito, pois mostra ser às vezes tão tênue (e tão sem
importância) a diferença entre as cores. Entre as escolhas. Entre as
identidades. Entre as próprias diferenças.
Pensando assim,
talvez o daltonismo me faça mais livre, mesmo que eu continue sem saber como
pintar um arco-íris.
Porque nessas
horas, meu filho me pega pela mão e me entrega o lápis certo.
E sorrindo, me
ensina o caminho.
Ilustração: Maria Luziano – cedida pelo Jornal de Piracicaba
Publicado no Jornal de
Piracicaba em 13 e 27/3/2015 e republicado em 10/4/2015