terça-feira, 14 de abril de 2015

Infinitos tons

(caio silveira ramos)

“Caso do vestido” sempre foi para mim um belíssimo poema de Carlos Drummond de Andrade.  Ou, quando muito, me fazia lembrar o imbróglio em que se meteu o presidente americano Bill Clinton, na década de 1990. Mas se você está lendo esta crônica no futuro, talvez vá se lembrar da foto de um vestido listado que circulou pela internet e causou discussões no final de fevereiro de 2015.
A foto foi tirada na Inglaterra e rapidamente ganhou o mundo: alguns diziam que enxergaram o vestido com as cores branca e dourada. Outros, azul e preta. Psiquiatras e neurocientistas rapidamente explicaram que as diferenças de percepção das cores se davam por causa da maneira como o cérebro tenta compensar a variação da luz que entra pelos olhos. 
Humildemente penso em causas que também colaboraram para as “miragens”: além do ângulo em que foi tirada a foto e a consequente incidência da luz – em foto posterior, tirada de outro ângulo, o vestido se mostrou de forma inequívoca como preto e azul -, as diferentes qualidades das telas dos diversos aparelhos eletrônicos em que as imagens foram visualizadas e até a distância e a posição (frontal ou “meio de lado”) que as pessoas olharam para a foto em seus celulares, tablets, computadores e TVs, levaram às diferentes visões.  Isso sem contar que muitas vezes, na mesma página de um “site”, a “foto original” foi apresentada no início da matéria de um jeito e, já no meio, de outro (às vezes mais escura, às vezes mais clara). E o que é pior: diante de matérias que apresentaram simulações (muitas vezes sem legenda) que aumentavam as saturações das cores (deixando as existentes mais fortes) e revelaram três fotos (uma com a cor original e as outras duas “pendendo”, uma para o dourado, e a outra para o azul), as pessoas ficaram ainda mais confusas. Teve quem se perguntou: “mas como? Agora são três os vestidos?”...
 A curiosidade é, na maioria das vezes, uma qualidade humana.  E é até louvável quando leva à busca por explicações científicas. Mas a repercussão da foto do tal vestido me surpreendeu por dois motivos: o primeiro, é que sou daltônico e sempre enxerguei as cores de maneira diferente da maioria das pessoas.  O que haveria de novo nisso? De certa forma, o espanto resgatou um pouco da dignidade dos daltônicos do mundo inteiro, que tantas vezes foram caçoados por não conseguirem enxergar um simples arco-íris ou os efeitos 3D de um filme de aventuras.
A segunda razão da minha surpresa é que, na mesma semana em que o tal vestido ganhou o mundo e as conversas, outras imagens caminharam pelos olhos dos povos, mas com menor interesse, bem menos alarde e sem a avidez e o espanto causados pelas cores mutantes.
Artefatos históricos (principalmente estátuas datadas do séc. VII a.C.), abrigados por um museu em Mossul (Iraque), foram destruídos a golpes de marreta e outros instrumentos por integrantes do grupo fundamentalista “Estado Islâmico”. Mas as imagens da destruição foram vistas com tal naturalidade pelo mundo, que constatei que o “daltonismo” humano insiste em enxergar o ignóbil com as cores mornas da banalidade.  Sob alegação de idolatria e adoração, os militantes do grupo – que na semana anterior tinham queimado 8 mil livros e manuscritos (alguns datados de até 5.000 a.C.) da biblioteca pública de Mossul,  e que comumente se orgulham em exibir vídeos com as decapitações daqueles que não compartilham suas ideias -, destroem parte da História humana baseados na intolerância.
Enquanto o mundo se espanta com as cores de um vestido.

***
Foi num fim de tarde. Num fim de aula. Na pré-escola:
Eu me descobri daltônico.
Já tinha desconfiado de algo estranho ao pintar uma árvore: mas afinal, com qual daqueles lápis eu deveria pintar o tronco? E a copa?  Eu sabia que a copa deveria ser verde e o tronco marrom: mas qual era o verde? O que era afinal “marrom”?  Achava que não tinha aprendido as cores direito: eu ficava entre dois ou três lápis, mas para mim eram praticamente iguais. E o que é pior (embora não soubesse expressar isso): meu cérebro, meus olhos não conseguiam encontrar as próprias definições daquelas cores.  No fundo eu sabia que aqueles lápis não eram amarelos ou azuis: eles pareciam ser verdes. Ou marrons. Eu também sabia que estava chegando perto: mas parava por aí. Distinguir entre as duas cores eu não conseguia.
Então, naquele final de tarde chuvoso da pré-escola, se desenhou um arco-íris. Não no céu, mas na folha em branco que estava sobre a minha mesa.  Mas além de desenhar, era necessário pintar o arco-íris.  E as cores foram fugindo dos meus olhos, escapando das minhas mãos. E começaram a se estranhar no papel.  Azul ou roxo? Laranja ou verde claro? Verde escuro ou marrom? Olhei para o resultado: seria aquilo? Não devia ser (pelo menos era o que revelava o silêncio intrigado dos meus coleguinhas de mesa). Um doloroso nó colorido nasceu na minha garganta.  A aula terminou, entreguei o trabalho para a professora e quando vi minha irmã Ester me esperando no corredor em frente à porta da sala, a chuva lá de fora escorregou para dentro e desmanchou o colorido do nó. Que mesmo assim teimou em escorrer transparente pelo meu rosto.
No caminho de volta, Ester – sábia já nessa época - me aconselhou a não me preocupar: a professora saberia enxergar meu arco-íris com outros olhos. Mais ou menos como eu tinha acabado de fazer.
Descobri naquele dia que meu problema não era de aprendizado, mas sim um distúrbio de origem genética chamado daltonismo.  E que alguns dos meus primos do lado materno também eram daltônicos. E que provavelmente também tinha sido daltônico meu avô. E também meu trisavô (que talvez por isso não variasse muito as cores do terno).
Exceto por aquelas primeiras experiências na pré-escola, nunca tive grandes problemas por causa da minha confusão com as cores.  De quando em vez, a não percepção de diferenças cromáticas em mapas, quadros, textos grifados e até em roupas me colocou em situações apenas curiosas.  Mas nada disso me atrapalhou de fato e realmente penso que não me embaraçará.  A não ser que eu ainda queira ser piloto de aviões - que deve lidar com inúmeros botões coloridos – ou talvez um espião internacional que, para salvar o mundo de uma catástrofe sem precedentes, terá que optar entre cortar um fio verde ou um marrom. Ou entre um azul-marinho ou um roxo.
Por esses dias, recebi a notícia de que o engenheiro americano Don McPherson, especializado em pesquisa de lentes, teria desenvolvido uns óculos que corrigiriam as distorções do daltonismo.  Achei muito interessante e assim que tiver oportunidade vou querer experimentar os tais óculos.   Mas não irei muito além de uma única experiência.
O daltonismo marca minha visão como um eterno lembrete, uma tatuagem que não me deixa esquecer que, assim como existem diferentes maneiras de ver as cores, há diferentes formas de entender o mundo, de interpretá-lo: e não estão aí justamente algumas das razões e dos muitos sentidos da arte?
   E se não bastasse esse encontro com a arte, a percepção constante da existência das diferentes visões de mundo revelada pelo daltonismo me prepara para respeitar as diferentes ideias, refletir sobre elas e até modificar as minhas próprias.  Assim, mesmo discordando da ideia alheia, sei da impossibilidade de qualquer tipo de imposição da minha vontade, porque é justamente a simples existência de pensamentos contrários e livres que garante a sobrevivência dos meus pensamentos.  E a liberdade de expressá-los.
Quase paradoxalmente, o daltonismo me encara todos os dias para me fazer abominar qualquer tipo de preconceito, pois mostra ser às vezes tão tênue (e tão sem importância) a diferença entre as cores. Entre as escolhas. Entre as identidades. Entre as próprias diferenças.
Pensando assim, talvez o daltonismo me faça mais livre, mesmo que eu continue sem saber como pintar um arco-íris. 
Porque nessas horas, meu filho me pega pela mão e me entrega o lápis certo.
E sorrindo, me ensina o caminho.


Ilustração: Maria Luziano – cedida pelo Jornal de Piracicaba
Publicado no Jornal de Piracicaba em 13 e 27/3/2015 e republicado em 10/4/2015