sábado, 31 de janeiro de 2015

Mar japonês

(caio silveira ramos)

Conheci Rogério Nakamura na pré-escola e logo nos tornamos amigos inseparáveis. 
Ele vinha da Capital cheio de inteligência, ideias de brincadeiras novas, conhecimento sobre desenhos e séries de TV que eu nunca tinha ouvido falar e os mais interessantes brinquedos que eu já tinha visto: carrinhos de ferro que abriam portas, bonecos de heróis dos mais variados tipos, formatos e nacionalidades (inclusive japoneses), bolas, joguinhos de tabuleiro, arminhas de plástico e uma bola gigante com alça que a gente chamava de canguru. Nada devia ser caro, nada era de luxo: o que encantava era variedade e o ineditismo que me faziam viajar, imaginando como seriam as lojas de brinquedo de São Paulo.  Ou talvez as do Japão, já que na minha cabeça, meu amigo tinha parentes que viajavam até lá e traziam presentes mágicos para ele e para seus três irmãos (todos também inteligentes e espertos): Maurício, que já estava no colegial e era um excelente aluno; Selma, que mesmo terminando o ginásio, entendia muito de cinema e era fã da banda Queen, e Mauro, um menino de onze anos muito divertido, rodeado de amigos e um solitário são-paulino numa família de corintianos.
Uma família era completada pela generosidade de um casal aparentemente tão diferente e ao mesmo tempo tão unido que era impossível pensar em um sem enxergar o outro.   Doutor Suguio era alto, muito quieto e sereno.   Dona Marta era pequena, falante e onipresente como uma típica mãe italiana, só que de inquietos olhos puxados.   Além do carinho explícito que tinham um pelo outro, o que também os unia era uma dedicação incondicional à família, principalmente quando se tratava de oferecer as melhores oportunidades de estudo aos quatros filhos.
E quando eu menos esperava, eles me acolheram de tal forma, que cheguei a pensar alegremente que meus olhos ficariam puxados também.
Os Nakamuras me levavam, no Opalão vermelho de quatro portas, para todos os passeios da família, inclusive ao Clube Cristóvão Colombo, onde eram sócios de carteirinha e eu, quase isso, tantas vezes entrei como convidado.  E tantas também foram as vezes em que frequentei a incrível casa dos Nakamuras, na rua Luis de Camões, que tenho a impressão de que meus pés ainda devem caminhar pelas paredes do longo e alto corredor que saía da sala e buscava a cozinha e os quartos.
Uma casa com pés impressos na imaginação das paredes, com portas que desvendavam esconderijos inusitados e escorregadores feitos de tampos de mesa que levavam a doze mil mundos diferentes de brinquedos.
Talvez essa casa só tenha existido em algum sonho.
Ou no outro lado do mundo.

***

PROCURA-SE UMA CASA NA VILA MONTEIRO:
Uma casa de portão baixo, com a garagem visível, que deve abrigar até um opala de quatro portas, de preferência vermelho.  Do lado direito da garagem, atrás da parte fixa do portão, deve haver uma pequena área gramada com um pinheiro alto no meio, perfeito para ser enfeitado no Natal.
Dentro da casa, precisa-se de uma sala de estar, com duas venezianas quadradas e grandes, poltronas macias e um sofá confortável.   Da sala deve sair um corredor comprido e estreito que possibilite que meninos, de 6 a 10 anos, espalmando as mãos e os pés contra as paredes, subam até encostar as cabeças na laje.  E depois, coordenando mão com pé, pé com mão, desçam lentamente até o piso.  Ou de um pulo só, soltando mãos e pés, aterrissem no solo da cidade feito o Homem Aranha. 
O corredor deve ter uma porta para sala de TV, outras duas para dormitórios médios e, no final, tem que acabar num quarto de casal. Um quarto aparentemente simples, mas com um gigantesco guarda-roupa embutido numa das paredes.  Só que – e isso é fundamental –, uma das portas deve ser falsa.  Bem, a porta logicamente é verdadeira, mas atrás dela, em vez de roupas, tem que ser revelado um imenso banheiro de azulejo azul, próprio para esconderijos ou aberturas para mundos paralelos.
Voltando pelo corredor, finalmente deve-se entrar na tal sala de TV, com espaço suficiente para um grande aparelho em cores, coisa rara se essa casa for também procurada no começo da década de 1980.  Na transição para a cozinha, uma mesa de jantar deve comportar uma família de seis pessoas, com um lugar sobrando na cabeceira para uma visita de 7 ou 8 anos, que embora fique fascinada pelas cores de comidas feitas com arroz e algas, tem sempre garantidas no prato as melhores coxinhas de frango. 
Terminada a cozinha, uma porta telada deve dar saída para uma escadaria de concreto que termina na entrada de uma edícula e no início de um longo corredor que se abre à direita.  Nesse corredor, potentes cavaletes de madeira, ao sustentarem duas longas e pesadas tábuas lisas, formam uma mesa para almoços grandes e externos.  Mas as tais tábuas devem ser pesadas só o suficiente para que dois meninos pequenos possam levá-las (uma de cada vez) até a escada de concreto, criando, assim, escorregadores tão potentes que podem até tirar fumaça das pernas das crianças se elas estiverem de “shorts”.
Não deve ser raro, terminado o escorregador, que as crianças acabem conseguindo brecar apenas dentro da edícula, onde além de máquinas de lavar, tem que haver uma bela coleção de brinquedos, com bonecos japoneses e outros da Marvel ou da Liga da Justiça. E carrinhos de ferro Matchbox, que abrem as portas e trafegam por mil e uma cidades.
Procura-se um menino vagando triste pela Vila Monteiro: o pai de seu amigo, dono daquela casa, voltou a trabalhar em São Paulo, levando toda a família junto.  
Procura-se um menino vagando triste pela Vila Monteiro: seu amigo foi embora, deixando para ele, dois carrinhos Matchbox novos: um policial futurista com vidros verdes e um esporte laranja que abre as portas da frente.  
Procura-se um menino vagando triste pela Vila Monteiro: a família de seu amigo foi embora, deixando sua televisão colorida de presente. A primeira televisão em cores da família do menino, que pôde ver, naquele 1980, o Ursinho Misha, mascote das Olimpíadas de Moscou, chorando colorido.
Mas vagando pela Vila Monteiro, o menino ainda procura aquela casa.
Chorando eternamente em branco e preto.

***

O pai do meu amigo Rogério foi chamado para um novo emprego em São Paulo e a família toda se mudou em 1980.  
Para manter a amizade, ele me mandava cartas contando pequenas notícias ou piadinhas inocentes.  E eu respondia enviando livros que tinha gostado ou histórias que eu mesmo escrevia e ilustrava com canetinha, normalmente narrando as aventuras do meu vira-lata Tipe transformado no super-herói Tigre Negro, que vivia salvando do perigo sua namorada Pink (por “coincidência” a cachorra pequinês dos Nakamuras).
Em janeiro de 1982, dona Marta e seu Suguio apareceram em Piracicaba para resolver alguma coisa sobre a casa da Vila Monteiro e me convidaram para voltar com eles para São Paulo. E mais: me convidaram para passar uma semana com a família na casa da praia de Peruíbe.  Eu, que nas férias de junho já tinha passado uma semana inteira longe de meus pais, achei que estava mais que habilitado para ficar distante da Moraes Barros mais uma vez.  Certo que, naquele junho, eu tinha ficado na casa da querida tia Josette, com a doçura do tio Samy e a alegria da prima Luciana me fazendo acreditar que os sons de Jundiaí eram extensões muito familiares da minha vida piracicabana.  Mas agora eu estava um semestre mais velho.  E os Nakamuras, afinal, eram minha família japonesa.
Com as bênçãos paternas – mas sob o choro da minha irmã Ruth – parti para São Paulo na mesma noite do convite.  No ônibus da Viação Piracicabana, com a cabeça apoiada no colo de dona Marta, me lembrei da primeira e única vez que tinha visto o mar.
Uns dois anos antes, meu pai fora para Santos visitar o Carlos Pinto, conhecido jornalista da área teatral.  Depois da visita, no final de uma tarde nublada, Carlos Pinto nos convidou para um mergulho no mar. Dissemos que iríamos apenas acompanhá-lo até a praia.   Me lembro da cena:  eu e meu pai parados numa estrutura de concreto – acho que era um grande duto que se esticava mar adentro – e Carlos Pinto, depois de um teatral mergulho, dando poderosas braçadas no oceano infinito.  Mas o que mais me chamou a atenção foram as baratas:  dezenas, centenas de baratas, rodeando o duto, desviando por piedade de nossos pés e entrando e saindo do mar de uma forma que nunca imaginei que pudessem.  De uma forma que eu nunca imaginei que o mar seria.
A não ser nesse dia teatral em Santos (em que as baratas disputaram o oceano com Carlos Pinto), meu pai nunca conseguiu levar minha infância até o mar, mergulhado que ele sempre estava no salário minguado e no serviço tanto, inclusive nos meses de férias, quando estudava, preparava aulas e ensinava as lições mais difíceis aos alunos com maior dificuldade de aprendizado.
Mas naquela noite de janeiro de 1982, com a cabeça apoiada novamente no colo de dona Marta, eu sonhava que o sacolejo que sentia não era do ônibus que nos levava do Terminal Rodoviário da Luz até a Vila Gumercindo.
Já era o balanço do mar.
Era o mar.
O mar.        

***
No dia seguinte à minha chegada à casa dos Nakamuras na Vila Gumercindo – casa com quase tantos segredos quanto a antiga da Vila Monteiro piracicabana –, partimos para Peruíbe.   No lugar do antigo Opala vermelho de quatro portas, seu Suguiu agora dirigia um Opala creme de duas, mas grande o suficiente para levar, com conforto, a esposa, os quatro filhos e um convidado magrelo ávido de mar.
Era final da tarde quando Dona Marta pediu para o marido lentear o carro numa rua paralela à praia para que eu espiasse o mar.
E o mar era azul. Azul como eu nunca tinha visto. 
Só que o encontro deveria ficar para o dia seguinte. Agora era hora de chegar, descarregar o carro, arejar a casa da praia, olhar curioso para os canais que passeavam paralelos às calçadas de quase todos os quarteirões, reencontrar com antigos brinquedos conhecidos que agora moravam na praia, comer, dormir.
Mas antes de dormir, a chuva chegou forte e egoísta. Na cama, imaginei baixinho que não poderia pisar na areia.  Não poderia tocar no mar.
Só que às cinco da manhã, acordei com um silêncio esperançoso brincando no lado de fora da casa. Peguei meu “Vinte Mil Léguas Submarinas” e fui quieto para a sala aguardar o dia em companhia do Capitão Nemo e do arpoador Ned Land.
Pouco depois seu Suguiu e dona Marta acordaram e decifraram minha vontade secreta: tentaríamos ir para praia, mesmo com o céu nublado.
E fomos.  O dia estava feio, cinza.  De perto, o mar não era mais azul. A praia parecia suja, mas só estava triste de galhos, plantas e conchas trazidos pela chuva ou pelas ondas. Quase que escondido, peguei um punhado de areia: queria era fazer castelos como os dos filmes, dos programas de TV: mas ela, escura, úmida, escorreu por entre os meus dedos. Nenhum castelo nasceria dali.   Foi então que Mauro e Rogério me chamaram para entrar no mar. E descobri que não sabia o que fazer.   O falso-infinito todo ali, cheio de som e tato, e eu perdido para sempre.
Fui andando, a água fria roçando os dedos, as canelas, os joelhos.  Meus pés experimentando todos os segredos do mundo.  E agora?  Que precisava ser feito? Caminhar, caminhar, caminhar até o corpo mergulhar todo até o outro lado do mundo? 
Então veio a onda e o riso. Riso meu, do corpo incendiado de sete mil novos sentidos.  Riso alheio, da minha falta de jeito.
Mas logo, enquanto os outros garotos se esqueciam de mim e se fartavam de mar, Mauro e Rogério se deram conta da minha emoção de menino ensimesmado e se enterneceram para mostrar como a onda devia ser recebida. Como eu deveria me entregar a ela. Como eu poderia me deixar levar pelo mar sem me perder para sempre.  
E o mar foi se amoldando ao meu corpo caipira, me fazendo dele, me mostrando que ele era para se brincar e se temer. E que sempre estaria ali, indomável, estranho, feito para esticar minha pele e a minha alma até a margem distante lá do outro lado.
Hoje (e para sempre), ainda que longe dos cuidados de uns olhos nikkeis a me guardar da beirada da areia ou da onda ao lado, a cada nova entrada no mar, eu me paraliso-menino-feito-de-um-dia-nublado.  
Até que nos reconhecemos mais uma vez. 
E, feitos de onda e sal, eu e o mar nos fantasiamos de infinito.

Ilustração: Maria Luziano – cedida pelo Jornal de Piracicaba
Publicado no Jornal de Piracicaba em  5 e 19/12/2014 e 16 e 30/01/2015