terça-feira, 22 de dezembro de 2015

Pedra e paixão

(caio silveira ramos)

Tinha uma pedra de dois milímetros no meio do caminho.
Fui parar no hospital, tomei soro, fiquei de molho e meu João foi passar uns tempos na casa dos avós.  No segundo dia, não por culpa deles, mas talvez da saudade, e contrariando seu estado habitual, ele estava amuado, sem apetite, com enjoos. E com febre.  
Em situações extremas, ele incorpora Edgar Allan Poe e dramaticamente brada: “nunca mais!”.  Dessa vez, porém, depois de surpreendentemente recusar um belo frango empanado, ele cabisbaixo apenas sussurrou para sua tia: “acho que nunca mais eu serei feliz”.
Mas já na quarta-feira à noite, depois de nos encontrarmos, ele foi tomar um banho e o corvo poerento voou para longe: feliz, debaixo do chuveiro, João Pedro cantou o hino do nosso time com todos os seus vinte pulmões, certo da vitória na final do campeonato que iria começar dali a vinte minutos.
Depois de vê-lo com os olhos embaçados durante um tenso jogo anterior, tinha prometido para mim mesmo que iria acompanhar as partidas do nosso time com a indiferença de uma madame assistindo, durante o chá, uma partida de golfe no Nepal.  Mas depois daqueles dias difíceis, deixei que João Pedro acompanhasse à partida com todas as emoções que tinha direito.
Antes da disputa de pênaltis decisiva, ele segurou minha cabeça com doçura e firmeza, encostou sua testa na minha e olhando fundo nos meus olhos disse: “nessa hora eles têm que ter paixão. Têm que ter paixão.” Eu só repeti baixinho: “paixão.”.
Depois de rolarmos no tapete da sala comemorando o título, e já com os ânimos mais serenos, eu disse que achava que o time tinha atendido seu pedido. Ele, aliviadamente esquecido, me olhou intrigado, e eu devolvi: “você se lembra do que disse que o time precisava na hora dos pênaltis?”
“Gols?”
“Sim, mas não foi isso que você disse.”
“Defesas?”
“Também não.”
“Colocar a bola onde a coruja faz o ninho?”
“Não. O que é fundamental na vida, filho? Paaaaaaaai...”
“Pai e mãe.”
Ri gostosamente e lembrei a ele que tinha dito “paixão”.
Ele gargalhou feliz, disse um “ah, é!” e, cantando e vibrando, foi comemorar nos braços da torcida.

Ilustração: Erasmo Spadotto - cedida pelo Jornal de Piracicaba
Publicado no Jornal de Piracicaba em 13/12/2015

Doce vida

(caio silveira ramos)

Eu poderia dizer que o mar chegou a Minas Gerais.  E que é um mar de lama de detritos, morte e destruição que invadiu o Estado após o rompimento de uma barragem da mineradora Samarco. Mar que, depois de atingir Minas, chegou ao Espírito Santo: o Rio Doce tem gosto de ferro, negligência e corrupção. 
Ou dizer que Paris sofreu violentos ataques terroristas que mesclam intolerância, radicalismo e covardia. E que tantos outros ataques covardes arrasam, todos os dias, países já assolados pela miséria na África e na Ásia.
Eu poderia comentar sobre as escolas fechadas em São Paulo, os fortes indícios de formação de cartéis para fraudar licitações de linhas de trens e o crescimento do crime organizado debaixo dos bicos do Estado.
Poderia também tratar dos escândalos do Mensalão, do Petrolão ou comentar sobre as estrelas políticas que alegam fins para justificar meios, esquecendo-se que a corrupção só gera mais corrupção e desvirtua todos os fins. Qualquer fim.
Ou até lamentar a arrogância cínica de chefes de Poderes, arautos dos bons costumes e donos de contas suspeitas na Suíça.
Mas hoje eu quero apenas me lembrar do Doceiro.
O Doceiro, que perdi o nome e por isso vou chamá-lo apenas assim, mas com letra maiúscula. O Doceiro, de cabelos pretos e sobrancelhas grossas, que para mim, era igualzinho ao apresentador do Programa de TV “Mundo Animal”.
O Doceiro, que era esperado de quinze em quinze dias na rua da minha casa e tocava a campainha para oferecer seus produtos e seus sorrisos.
O Doceiro, que vinha de chapéu de palha e um carrinho pouco maior que esses de feira, todo rodeado por uma placa de alumínio decorada com furinhos que não deixavam ver os doces lá dentro (talvez só para guardar surpresa).  O Doceiro, que falava o que tinha no dia, enquanto tirava os produtos do carrinho. E ia mostrando tudo, os olhos da gente brilhando junto com as barras firmes em forma de tijolinhos embalados com plástico e com o rótulo grudado no centro: doce de leite, paçoca (daquelas mais consistentes e macias), goiabada e bananada coberta com açúcar, tudo para cortar com faca ou já repartido em quadradinhos.
Houve fases em que ele só vendia um tipo de doce: palitos compridos de bananadinha açucarada embrulhados como se fossem balas em plástico transparente.  Ou pacotes de “geleinha” de mocotó, metade branca, metade rosa. Ou conezinhos de massa frita recheados com doce de coco. Mas tudo o que ele vendia era gostoso.
Até que O Doceiro não veio mais. Fiquei sem sorriso, sem notícias, sem doces, sem saber seu nome.
Mas ficou na boca o gosto da vida verdadeira, sem corrupção, sem intolerância.  Só feita por um sorriso debaixo de um chapéu de palha.


Ilustração: Erasmo Spadotto – cedida pelo Jornal de Piracicaba
Publicado no Jornal de Piracicaba em 29/11/2015



Olhos de ver

(caio silveira ramos)

Eu ainda era pequeno, muito pequeno, mas minha mãe logo percebeu que alguma coisa no meu olhar não estava bem.  Talvez eu também até percebesse, mas como o mundo que se me apresentava era bom – e eu não tinha outro olhar para comparar -, me pareceu que tudo deveria ser como já era.  Mas para ela não: eu merecia conhecer o mundo com todos os seus sentidos.
Ela procurou um oftalmologista, depois outro, e outro, e outro. Foi até Campinas, mas a resposta era a mesma: “isso é coisa de mãe. A senhora é que está enxergando demais”.
Mas ela sabia que não somente os médicos estavam enxergando menos do que deveriam: eu também estava.
Foi então que ela descobriu o jovem oftalmologista Francisco Komatsu. Já na primeira consulta, enquanto me distraía com um coelho e uma coruja movidos à corda, ele constatou que a visão da mãe estava certa e a do filho realmente errada. E o que era pior: era grande o risco da vista se perder para sempre: “dificilmente ele escapará de uma operação”.  Minha mãe perguntou se nenhum outro método poderia ser tentado antes de uma cirurgia.  Ele disse que poderíamos experimentar algumas coisas, mas insistiu: “dificilmente ele escapará de uma operação”. 
Então começamos a correr contra o tempo: passei a usar óculos, muitas vezes com tampões e artifícios lúdicos para me distrair: para forçar a vista preguiçosa, tapava-se uma das lentes com coisas curiosas - recurso que minha mãe chamava de “televisãozinha” -, como um esparadrapo mágico, um durex invisível ou até quadrinhos de gibis da Turma da Mônica. Mas eu devia me cansar daquela ginástica, porque várias vezes me pegaram com os óculos virados de ponta-cabeça: eu queria deixar meu “olho melhor” livre para ver o que o outro desperdiçava.
Além das consultas periódicas com Dr. Komatsu, passei a frequentar também a sala de uma técnica-ortóptica, uma moça muito doce chamada Walquíria, que me postava diante de quadros com letras e figuras, e também de aparelhos curiosos que serviam para exercitar meus olhos: em um deles, eu deveria, como se manejasse um periscópio, colocar um leão desenhando em uma jaula. No outro, um soldadinho tinha que ir para dentro do quartel. Minhas mãos tentavam dirigir aqueles lemes, para frente e para trás, mas frequentemente as figuras iam para um lado e a jaula ou o quartel para o outro. Eu não conseguia, não conseguia: era traído pelos meus próprios olhos. Um dia cheguei a dizer que tinha acertado. Mas logo contei a verdade: minha visão parecia querer o leão e o soldado livres para sempre.
Em casa também havia exercícios. Recortava-se de um jornal um artigo comprido. E eu, com uma caneta hidrográfica vermelha, tinha que fazer um pontinho dentro de cada letra que tivesse uma parte fechada, como um “a”, um “o”, um “g” ou um “p”. Outra brincadeira interessante era colar um grande desenho (a figura do Cebolinha, por exemplo) em uma placa de isopor fina e, com uma agulha – com a parte em que eu segurava devidamente protegida por um esparadrapo cuidadosamente colocado por minha mãe para não ferir meus dedos e meus olhos – furar todo o contorno da figura: quanto mais juntos os furos melhor. 
E havia também o terrível colírio guardado na geladeira. Eu confesso que não me incomodavam as gotas geladas caindo nos meus olhos.
O que me intrigava, depois que minhas vistas se desembaçavam, eram as gotas que, quase escondidas, teimavam em envidraçar os olhos de minha mãe.

***
Dr. Komatsu endireitou-se na cadeira e me cumprimentou:
“Parabéns! Você conseguiu!”
E virando-se para minha mãe, completou:
“A senhora salvou a vista dese menino.”
Depois de um ano e meio de colírios gelados, consultas, exames, exercícios de ortóptica, tampões, e de óculos e lentes que muitas vezes custaram os olhos da cara de dois professores da rede pública, os meus próprios olhos escaparam de uma operação que, no meio da década de 1970, deveria apresentar uma série de riscos.  Mas esses mesmos olhos contaram com atalhos que facilitaram tal fuga: a ciência e a sagacidade do Dr. Komatsu, a serena doçura de Walquíria - a especialista em Ortóptica -, o acolhimento de Dona Rosa e de toda equipe do consultório, algumas poucas caixinhas de bonecos “Playmobil” comprados (ainda sob o efeito embaçador de colírios para dilatar a pupila) no “Ao Cardinali” (que maravilhosamente ficava no caminho de volta do consultório), e principalmente os atalhos cavados pelos olhos de uma mulher que viu o que vários médicos não viram. Que viu o que eu não conseguia ver. Que viu que eu não poderia ver. Que viu por mim.
E mesmo com a vista salva, várias sentenças rondaram (e ainda rondam) meus olhos:
1ª) “Nunca terás cem por cento de visão. Aliás, estarás longe disso. A propósito, tua visão ficará cada vez pior.”
2ª) “Deverás sempre se sentar, enquanto na escola estiveres, bem na frente e bem no meio da sala.”
E lá fui eu “para o meio e para frente” em uma época em que não se associava a imagem de meninos de óculos à descolada figura de um “nerd”.  E mesmo sendo também uma época em que ninguém usava ainda a palavra “bullying” – mas ele existia de todas as formas possíveis – nunca sofri, em todos os meus anos na escola, qualquer tipo de gozação ou aporrinhamento.  Tive a sorte de ver brotar amigos que me acompanharam pelas salas de aula e pelos pátios das escolas, e que ainda, muitas vezes, vieram se sentar ao meu lado para que eu não me sentisse sozinho.
No último ano de colégio, quis me rebelar contra os meus olhos. Tentando fazer com que a colega ao lado virasse seu olhar na minha direção, resolvi, durante uma semana de aula, me sentar no meio, mas na terceira fileira. E ainda sem os óculos!  Não enxerguei a lousa, nem as fórmulas das aulas de Química. Não consegui ver (lógico), mas provavelmente a colega ao lado nem deve ter reparado na minha mudança de lugar e de estilo. E na semana seguinte, lá estava eu de novo, de óculos na cara e sentado na carteira do meio e da frente.
E nos caminhos que fui trilhando (às vezes levando alguns tropeços e umas tantas topadas) aprendi a remodelar meus outros sentidos, tentando enxergar além dos olhos.  Mas mesmo eles, ainda que mais nebulosos a cada ano, nunca deixaram de me acompanhar nas leituras dos livros e do mundo.  E dessa forma, fui tentando treinar meus olhos-de-pouco-enxergar para muito ver.
Assim como os olhos que me foram emprestados na infância por uma mulher. Olhos que olharam por mim.
E me permitiram mirar os infinitos.


Ilustração: Erasmo Spadotto – cedida pelo Jornal de Piracicaba
Publicado no Jornal de Piracicaba em 1º e 8/11/2015