(caio
silveira ramos)
Sabe a Deise? É,
a Deise, amiga inseparável da minha irmã Raquel. Isso mesmo, as duas sempre
juntas, sempre falando-rindo-falando, felizes da vida: a falta de assunto nunca
apareceu para elas. Isso, conhece? Pois é, foi ela quem contou que tinha um
professor de Inglês que dava aulas individuais ou no máximo para duas pessoas.
A Deise tinha aulas com ele uma vez por semana e comentou sobre o irmãozinho
assim-assado da melhor amiga: “o senhor precisa ver!”. Depois disso, a Deise, sempre risonha e
generosa, falou pra mim: “Dr. Ruben quer conhecer você. Disse para levar o
boletim.”
E eu fui com
minha mãe, numa noite de quarta-feira, até a rua Alferes, quase esquina com a
Dom Pedro II. Ali era a casa do Dr. Ruben Carvalho, pesquisador
internacionalmente reconhecido e Professor Catedrático de Fitopatologia e
Microbiologia Agrícola da ESALQ, aposentado fazia muitos anos. Mas naquela noite ele disse, apenas,
“aposentado”. E também que seu médico
recomendara que, aos 77 anos, deveria fazer alguma atividade para exercitar a
mente. Por isso ele tinha resolvido dar
aulas de Inglês para alguns alunos recomendados por pessoas conhecidas.
Naquele primeiro
contato tive um pouco de medo: Dr. Ruben era um homem grande, de rosto redondo
e nenhum fio de cabelo na cabeça. Usava óculos de aro grosso, escuro e
quadrado, e fumava um cigarro longo. E parecia muito sério e educado. Olhou meu
boletim com atenção e perguntou se eu poderia vir às quartas-feiras, às três
horas da tarde, para começar as aulas.
Minha mãe, pedindo desculpas, indagou sobre o preço e ele serenamente
disse que não cobrava nada. E emendou: “é ele quem está me fazendo o favor: as
aulas fazem bem para mim”.
Logo no primeiro
dia, todos os meus medos se perderam pelo ar e não foram nunca mais
vistos. Nem mesmo pelo
galinho-cata-vento que o próprio Dr. Ruben tinha construído para enfeitar o
quintal em declive, e que girava bem perto da edícula de teto baixo dividida em
dois cômodos, ambos com grandes janelas.
O primeiro
cômodo abrigava uma mesinha que servia para passar roupas, mas que muitas vezes
foi utilizada para os estudos da minha irmã Ruth, que me fazia companhia nas
idas e vindas para as aulas. O segundo – que já tinha sido uma oficina de
marcenaria para os trabalhos manuais e artísticos do professor –, agora era
usado como sala de aula, decorado apenas com uma mesa de madeira (provavelmente
feita por ele mesmo) e uma lousa pendurada na parede caiada. Nós nos sentávamos
frente a frente, e eu, depois de descobrir seus títulos acadêmicos e sua
importância nos meios científicos, ficava me perguntando como um homem tão
importante, que tinha dado aulas e conferências em tantos outros países, e
ainda tivera como mentor o grande pesquisador americano Edwin E. Honey, podia
tratar com tamanha deferência um menino que ainda usava shorts.
Um menino a quem
o Professor Doutor dava aulas de Inglês.
Um menino a quem
o Professor Doutor chamava simplesmente de Cainho.
***
Nos dias de
chuva, me lembro do Dr. Ruben Carvalho e seu sorriso aberto junto com o portão.
E de seu guarda-chuva enorme me protegendo enquanto desviávamos dos canteiros
incrustados no pátio de pedras lisas. E depois, quando passávamos pelo portão
alto, descíamos pela rampa do quintal sob os giros molhados do
galinho-cata-vento e chegávamos à edícula onde ficava a sala de aula. Eu via pelo janelão os verbos irregulares se
misturando à chuva grossa, até que chegavam, numa bandeja de prata, uma garrafa
de Guaraná Antárctica e bombons de chocolate. E os verbos irregulares saiam da
chuva.
Me lembro dele
também ao me encontrar num porta-retrato morando na casa materna: a foto tirada
por ele, o sorriso tímido dos doze anos, as lentes dos óculos escurecidas pela claridade,
a pastinha, com o caderno e as apostilas datilografadas, abrigada em frente ao
peito.
Me lembro do Dr.
Ruben Carvalho quando alguém abre uma garrafa de vinho do Porto. Me acho de
novo nas visitas das férias, eu e minha mãe levando lembranças de agradecimento
e flores para dona Maria da Glória. Na sala, eu sem jeito nas poltronas
elegantes, as mãos sem saber aonde ir, a voz sem saber o que falar. Então era
servido um calicezinho de vinho e bombons recheados de licor. Eu comendo
devagar, mordendo uma pontinha todo educado, o licor escorrendo pelos dedos e
querendo escapar pelo canto da boca. As mãos ainda mais perdidas, o que fazer,
o que fazer?, um lenço saindo do bolso, o licor secando nos dedos. Na hora da
despedida, tudo certo: o licor era tão encantado que as mãos já estavam limpas
para os cumprimentos.
Penso no meu avô
ao me lembrar do Dr. Ruben Carvalho: depois de dois anos, o mesmo médico que
disse para ele dar aulas, recomendou que era hora de parar. Nos despedimos cheios de tristeza e os verbos
irregulares se perderam na enxurrada.
Mas, três anos depois, quando passei no vestibular, ele veio me fazer
uma visita. Elegante como sempre. E
ainda mais. Assim como tinha sido meu avô, mesmo nos tempos mais difíceis:
chapéu de feltro, paletó, gravata-borboleta e uma bela bengala. E Dr. Rubens trouxe flores para minha mãe,
conversas para meu pai, bombons para a família e um cartão para mim, que guardo
até hoje e releio sempre que posso.
A lembrança do Dr.
Ruben de Souza Carvalho, pesquisador brilhante e antigo Professor Catedrático
de Fitopatologia e Microbiologia Agrícola da ESALQ, se despedaça pelas ruas da
cidade: nenhuma delas lhe faz uma homenagem. Mas não importa, pois se as ruas
guardam os nomes, também perdem rapidamente a memória.
Passeio com os dedos pelo cartão e as palavras
escritas à caneta pelo meu velho professor de Inglês, feito o licor numa tarde
de férias, escorrem pela minha mão.
Não preciso de
lenços nem da água da chuva: gentis como sempre foram, Dr. Ruben e suas
palavras já se descolaram da minha pele.
E sem pressa,
escapam para dentro do meu peito.
Ilustração; Erasmo Spadotto - cedida pelo Jornal de Piracicaba
Publicado no Jornal de Piracicaba em 11 e 25/10/2015