Os pais da Anita – irmã de Bruno, o cavaleiro –, comentaram que,
de um Mirante muito, muito distante, um certo escrevinhador estaria tratando de
várias coisas bem interessantes. Ouvindo isso, Anita – irmã de Bruno, o
destemido –, empertigou-se toda do alto dos seus sete anos de olhos azuis
transbordantes e emiliou: “então por que ele não escreve sobre mim? Eu sou uma
coisa bem interessante!”
Pois para escrever sobre “essa coisa bem interessante” é preciso
brincar no tempo, no tempo em que a avó da Anita – Anita, irmã de Bruno, o
viajante –, teve que sair ainda menina da casa dos pais em Piracicaba para dar
aulas no Município de Colina, onde morava a irmã mais velha, já
casada. Por ser aquele tempo difícil, as meninas que se
formavam professoras partiam muito novas para trabalhar fora de suas cidades. E
por não terem idade suficiente para os concursos de ingresso no Magistério,
muitas acabavam dando aulas em fazendas e sítios perdidos no mapa, e enviavam
todo o salário recebido para ajudar no sustento da família, incluídos aí, os
gastos com os estudos dos irmãos menores. Muito se fala na força do movimento
feminista da década de 1960, mas ainda é preciso um estudo profundo sobre essas
mulheres-meninas brasileiras da primeira metade do século XX que alfabetizaram
gerações com doçura e coragem desbravadora.
Além de tudo isso (morar e trabalhar longe da família desde
muito cedo, não ter idade para prestar concursos, enviar todo o dinheiro para
ajudar nas despesas da casa dos pais), a menina que um dia seria avó da Anita –
Anita, irmã de Bruno, o violinista –, tocava piano lindamente, mesmo que
tivesse que se exercitar num velho e alquebrado instrumento de mecanismo
estrambólico e terminal. Mas em Colina, não era possível ouvir o “pianar”
faceiro da menina: onde morava não havia sequer uma caixinha de música.
Eis que a bisavó da Anita – Anita, irmã de Bruno, o curioso –, encontrou nas
ruas de Piracicaba com seu Pousa, dono da antiga loja de instrumentos “A
Musical”, e perguntou quanto custaria um piano bem simples, já que sua filha,
além de ter que morar longe dos pais, estava também distante de seu brinquedo
preferido. Ao saber do preço proibitivo para sua família, aquela senhora
sorriu e disse que os dedos da menina teriam que esperar mais algum tempo para
passear pelas teclas novamente. Conhecendo o talento da garota e
ciente de que dedos encantados não podem deixar de passear, sob pena de esquecerem
seus caminhos, seu Pousa também sorriu. E alguns dias depois, um piano Jersey,
desses mais baixos e compactos, para apartamentos, apareceu em Colina, lá na
sala da casa onde morava a menina. Junto com a alegria, ela recebeu o
seguinte recado: que pagasse quando pudesse. Mas a tal menina,
mesmo comovida com a generosidade, era grata e gostava das coisas muito certas.
E foi assim que, a partir daquele dia, seu salário (que continuou sendo enviado
integralmente para a família) agora tinha uma parte religiosamente reservada
para o pagamento mensal do piano sonhado. E satisfeito, seu Pousa sorriu
mais uma vez.
Não passou muito tempo, a irmã mais velha, por causa do trabalho
do marido, teve que se mudar de Colina, e a menina, que ainda não tinha idade
para prestar o tal concurso para o Magistério, teve também que se mudar, só que
dessa vez para a casa de um irmão que já morava com a esposa em Londrina, no
Paraná. E lá se foi a menina de novo para sua rotina de
morar-longe-dos-pais-aulas-infinitas-salário-todo-para-a-família-e-tocar-piano.
Não, esperem: tocar piano não mais, que seu instrumento não pôde ir para
Londrina e acabou ficando na casa da família em Piracicaba. As irmãs mais novas
é que se alegraram dessa vez.
Então a menina passou no concurso, foi morar em Santo Anastácio,
interior de São Paulo e, ela e seu piano, agora já totalmente pago, viveram
felizes para sempre, certo? Certo, menos o final feliz: o pai da menina achou
que devia enviar o instrumento para sua primeira neta aprender a tocar piano.
Bom, na verdade, verdade mesmo, talvez pretendesse apenas dar uma prova de
gratidão ao genro, marido da filha mais velha, que lhe prestara um grande
favor. Qualquer que fosse o motivo, porém, lá se foram todas as teclas para o
Município de Assis.
A futura avó da Anita – Anita, irmã de Bruno, o conquistador –,
agora já uma moça, foi seguindo sua carreira de professora, desbravando cidades
e complementando a renda com aulas nas residências de alunos que tivessem
piano. Mas em casa, quase em segredo, só podia exercitar seus dedos sobre um
teclado de cartolina. E lá foi ela para Palmital (sem o piano), para Paraguaçu
Paulista, onde encontrou seu grande amor e teve a primeira filha (mas não o
piano), para Araraquara – período difícil, quando precisava viajar todos os
dias para lecionar, pois morava em São Carlos, onde nasceu a segunda filha (mas
não apareceu o piano) –, e finalmente para Piracicaba, lugar em que logo no
primeiro ano de estada chegou a terceira filha, mas não o piano.
Certo que em suas aulas na Escola de Música do Maestro Ernst
Mahle, seus dedos se encontravam com o instrumento querido. Mas ali eles
não podiam passear livremente. Então, se naquele final da década de 1960,
ainda eram raros e muito caros os chamados “teclados”, em casa, quando o tempo
se distraía, ela seguia tocando sobre as teclas desenhadas na cartolina,
ouvindo os sons com a alma e com os olhos que desnudavam as partituras.
Foi então que aconteceu algo novo, pouco antes de nascer seu
quarto filho: o marido da professora, mestre das palavras, reuniu forças e
economias para presentear sua amada com um belo e sonoro piano alemão H.
Kriebel.
Mas quando a tão interessante Anita – irmã de Bruno, o
patrulheiro do futuro –, entrará nessa história?
Calma, calma, isso ficará para daqui a pouco.
Por enquanto, estamos naquele dia longínquo, quando a tal
professora de piano dobrou finalmente seu teclado de cartolina, e depois de
mais de vinte anos abriu com cuidado a tampa de seu brinquedo, acariciou com a
ponta dos dedos aquele sorriso infinito e se preparou para o primeiro acorde.
E sua casa, e seu bairro, e toda se cidade se inundaram de som e
de alegria.
***
Quando menos se esperava, foi
descoberto, no chão da copa da casa, um pozinho debaixo daquele piano. E
não era um pó mágico que irradiava sinfonias e noturnos por todos os lados: era
um foco de cupins que ameaçava o instrumento e todos os sons. Resultado:
lá se foi o piano para o tratamento devido.
Só que dessa vez, a copa da casa não ficou sem música por muito
tempo: a irmã mais velha da professora – mãe daquela sobrinha que tinha
recebido há muitos anos o agora já velho piano Jersey –, se deu conta que
nenhum de seus filhos se interessava muito por sons e teclas, e que até sua
menina, não mais menina, já saíra de casa. Assim, finalmente, ainda que
com certas avarias aqui e ali, fruto de arteirices de décadas, o pequeno piano
Jersey voltou para suas mãos prediletas. E feliz, o velho piano tornou a
cantar.
E o que é melhor: não ficou muito tempo cantando sozinho, que o
outro piano, livre de cupins e de pós desencantados, voltou para fazer dueto
com o velho Jersey na copa da casa da rua Moraes Barros, justamente na época em
que nascia o quarto filho da professora de música. E para embalar o pequeno,
ela e suas três meninas – principalmente a doce Ruth, que seguiu os dedos da
mãe no caminho dos teclados – abriram os instrumentos e, pianinho, pianinho,
encheram de música aquele coração novo.
Embora a casa exalasse sons e encantamentos, a professora e seu
amado concluíram que, se um piano era fundamental, dois simbolizavam quase um
desperdício. Principalmente porque o chamado “Quartão” dos fundos da casa (de
pé direito alto e teto sem forro) seria reformado para dar lugar aos quartos
das crianças, deixando livre o aposento da frente, que se transformaria no
“Quarto do Piano”. No singular.
Depois de muito refletirem, a professora e seu marido, sempre
democraticamente, decidiram que ficariam com o pequeno e antigo Jersey, e que o
piano maior, o H.Kriebel, seguiria para a Escola de Música de Jundiaí, onde
seria mais imponente e útil para as aulas de Dona Josette, outra mana musical
daquela professora que viria a ser a avó da Anita – Anita, irmã de Bruno, o
camarada. Afinal, a professora Josette, quando jovem, também enviara
heroicamente todo seu salário para a família, o que, de certa forma,
contribuíra para que sua irmã comprasse seu primeiro piano.
E lá se foi o H.Kriebel para Jundiaí, enquanto seu parceiro
Jersey transferiu-se da copa para seu “Quarto do Piano”, na rua Moraes Barros,
em Piracicaba.
Eis que, mais de trinta anos depois, surge Anita – irmã de
Bruno, o primogênito. E a menina, nascida em Campinas – tal qual o irmão
Bruno, o levado –, saiu de sua casa em Vinhedo, foi morar em Uberaba, viu-se em
Turim, até que um dia voltou para Vinhedo. Que não é tão longe de
Jundiaí. A mesma Jundiaí onde sua tia-avó Josette continuava dando aulas
de música.
E não é que a Anita – irmã de Bruno, o observador –, resolveu
seguir os passos (ou os dedos?) de sua avó e escolheu o piano para trilhar seus
caminhos?
E lá foi ela estudar com sua tia Josette.
E lá foi ela surpreender sua tia Josette.
Pois se descobriu que a menina tinha as mãos e a alma moldadas
para o piano e seus sorrisos. Pois se revelou que ela não era simplesmente a
irmã de Bruno, o único. Era a Anita, ela mesma.
Foi então que seu pai, surpreendendo a Anita, o irmão da Anita,
a mãe da Anita e a avó da Anita (aquela professora de piano do começo dessa
história), comprou o agora velho piano H.Kriebel da Escola de Música de Jundiaí
e o instalou (com laço de fita e banda de música) na sala da casa da menina, lá
em Vinhedo.
Por isso hoje os dois pianos voltaram a tocar juntos, mesmo que
em cidades diferentes: em Piracicaba, no “Quarto do Piano”, a avó da Anita abre
a tampa do seu pequenino Jersey – que ela, professora-menina, comprou há tantos
anos em sofridas e esperançosas prestações –, retira o feltro que recobre o
teclado, relembra o amado e se prepara para tocar; em Vinhedo, neste mesmo
instante, na sala de sua casa, Anita faz o mesmo ritual e se prepara para
dedilhar o piano que um dia seu avô deu de presente para sua avó.
E a quatro mãos, como se acariciassem um mesmo e interminável
sorriso de notas, as duas conversam por música.
Sob o olhar atento de Bruno, o amado.