(caio silveira
ramos)
Admiro
profundamente artistas que, com pouca ou nenhuma instrução formal, são
compositores formidáveis, mestres do som e da palavra: Cartola, Nelson
Cavaquinho, Argemiro Patrocínio e João Pacífico são alguns dos elos
fundamentais que tecem minha alma.
Deles sou feito. Assim como sou
feito do desespero de conhecer, de me abastecer não só de poesia, mas dos
outros, de música, de ideias, de livros que me embriaguem de liberdade.
Por esses dias
me deparei com um sujeito que era contra tudo isso: metido a poeta, disse que
não gostava de ler e conhecer outros escritores porque temia macular seu
próprio estilo. Falava-se da poesia de Carlos
Drummond de Andrade naquele dia e pensei lá comigo como seria bom que o tal
sujeito maculasse não apenas sua escrita, mas sua vida com a sombra gauche de seu Carlos. Mas o pretenso escritor prefere seguir só,
ostentando, orgulhoso, sua apologia da ignorância.
Ignorante não
é aquele que desconhece, mas aquele que desdenha o conhecimento. Nos programas de televisão, nas revistas, nos
portais da internet se espalham as
mais diversas formas de ignorância: “Do que adiantam livros, estudo? O que vale
é a fama e o dinheiro que eu tenho na conta” –, disse outro dia uma senhora,
representante dessa nova categoria de pessoas conhecida como “personalidade de
mídia”. Os sinais de sucesso na vida são
o dinheiro e a fama, e se você não tem nem um nem outro, parabéns, é um
fracassado. E esse pensamento
distorcido se espalha pela sociedade afora, alimentando desde a
supervalorização nociva de alguns poucos artistas e esportistas até a
prepotência do fulano que se desentende com um cobrador de estacionamento no shopping e cospe: “é por isso que eu
estou aqui pegando meu carro e fazendo compras, e você está aí atrás desse
guichê”. A apologia da ignorância – ou o que é pior, a glamorização da
ignorância – é nefasta para um país como o nosso, cuja principal saída para
erradicar a miséria de vez é o investimento maciço na educação, principalmente na educação básica.
Um governante não precisa ser letrado ou ter títulos acadêmicos:
a sensibilidade social, a habilidade política e a honestidade independem do
grau de escolaridade. Vários bacharéis, muitos deles adornados pelo
palavrório vazio, governaram o País com os olhos voltados apenas para grupos economicamente
já privilegiados e provocaram o aumento das desigualdades sociais. Governos de
militares de alta patente arrasaram o ensino público básico. Mas se a educação formal não deve ser exigida do governante, é imprescindível que
ele dê exemplo de sua busca incessante pelo conhecimento, sob pena de
alimentarmos a República dos Bacharéis Vazios ou o Estado das Personalidades da
Mídia. Pobres de nós, premiados com governantes que, se não pediram o
próprio esquecimento, se esqueceram do que escreveram. E ainda, com outros, os
que querem esquecer que alguém já escreveu alguma coisa um dia. E com aqueles
que necessitamos esquecer que escreveram, pois seus livros têm piores defeitos
que os da velhaca raposa fantasiada de coelho místico.
Penso que
minha primeira dor de alma, que deve ter produzido profundos reflexos sobre meu
temperamento, apareceu ainda dentro do ventre materno: minha avó Jandyra – de
quem minha mãe herdou o nome e o coração – faleceu um mês antes do meu
nascimento. Reconhecida por toda
família como a mais inteligente dos doze irmãos, ela, a mais velha deles,
cursou apenas até o quarto ano primário, justamente para que os menores
pudessem estudar, como, alías, era muito comum naquele início do século
XX.
Mas minha avó
era de um feliz inconformismo, com uma sede de conhecimento tão vital e livre,
que uma das imagens familiares mais marcantes é a dela lendo enquanto
cozinhava: com uma das mãos mexia as panelas, com a outra segurava um livro,
fosse um romance ou algum compêndio de botânica ou astronomia. Não havia desculpa para a falta de tempo. Ela
queria ler para conhecer, aprender, questionar. E isso tudo, sem deixar o
feijão queimado.
Dentro do
ônibus, sentada ao lado da janela, lá vai uma moça na sua elegância discreta
(que em Sampa há também), eternamente concentrada em um jornal ou em um livro,
quase sempre com uma etiqueta de lombada de alguma biblioteca: um manual de
economia ou de inglês, uma gramática ou até mesmo um romance. Do meu canto, penso que não existe nada mais
livre e belo que essa moça com sede de palavras e infinita vontade de
degluti-las até transformá-las na sua alma.
Por enquanto,
ela pede licença ao passageiro ao lado, levanta-se com um sorriso e, antes de
descer do ônibus, ajeita recatadamente os cachos dos cabelos.
Mas não
demorará muito para que sua alma seja tomada por palavras encaracoladas,
compostas, inventadas, aladas, que, aproveitando a janela aberta do ônibus,
levarão a moça pelos ares da cidade num voo ensolarado em que a fome e a sede
de novas palavras e sentidos continuarão desenfreadas.
Lá foi ela.
Voou.
Ilustração:
Erasmo Spadotto - cedida pelo Jornal de Piracicaba
Publicado no Jornal de Piracicaba em 5/10/2012
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