domingo, 14 de setembro de 2014

Voltas sem idas

(caio silveira ramos) 
                                      
Tinha que ser assim: voltar flutuando nas palavras, distraído.  Nas palavras desastradas, que esperavam que eu voltasseindo, mas se me veem, é só miragem. Estou aqui, estou lá, estou aí, mas pelas palavras.  Por meio delas, mas não só por causa de.
Nasci no ventre desse rio, mergulhado, inundado por ele, que me pertencerá por mais quinhentas gerações, mesmo que eu beba de outras águas: no meu sangue ele habita e corre de mim para as veias dos que vierem depois, filhos, netos.  Infinitos.
Saí do leito do rio para o das leis: do Largo Santa Cruz para o de São Francisco.  E mesmo acinzentado pelas marginais, as correntezas me carregaram com tanta força que, quando nasceu meu menino, para embalá-lo mais sereno, abriguei-me nas beiradas enconcretadas do riacho do Ipiranga.
Nesses anos todos de filho ausente ensuspirado, voltei de fato e de corpo muitas vezes: vim rever os amigos, os parentes, redesenhar meus amores de infância, me entristecer profundamente duas vezes e me reencontrar no aninhamento do colo da minha iara-mãe, da abelha que produz mel e é dele feito. Iara que me colheu do rio para me enfeitiçar neste meu mirante de infinitos.
Infinitas são as visões deste mirante perpétuo: horizontes tão longínquos que posso me ver pelas costas a contemplar as infinitas vozes de que sou tecido.   As almas envaraldadas que me embriagam todos os dias a me dizer quem sou.  E infinitos são os olhos que empresto para as órbitas alheias a me levar pelo mundo.
Pelas palavras voltarei sempre a este mirante imaginário, para falar daquelas vozes, daquelas almas, dos meus olhos embaçados de picumã, mas viajantes pelos passos alheios.  Para falar dos infinitos. Estarei aqui ou em qualquer lugar destas páginas de papel ou de nuvem.  Capinarei meus verbos roubados das bocas caipiras-negras-italianadas (e de tantas outras trazidas pelas reviradas do mundo).    Derramarei uma centena de letras cozidas pela letra miúda de meu pai nas margens dos seus livros anoitecidos.  Plantarei minhas palavras, garapadas no doce da cana ou na aspereza da sua pele embagaçada. 
E infinitos também serão os assuntos: palpitarei barbeiramente sobre política, me embrenharei atrás do gol, cambalearei pelos sons e pelos novelos de histórias reais ou deslavadamente mentirosas, pois todos os meus caminhos sempre deram na rua do porto.
Por fim, decifrarei os sonhos dos leitores (sejam tais sonhos verdadeiramente sonhados ou preferivelmente inventados), mas não o farei pelos sotaques de deuses olímpicos ou freudianos.   Minha decifração será pela poesia, pois é esse meu sotaque, ainda que feito na prosa.
Meu sotaque nascido das águas redemoinhadas pelas pedras desse rio onde o peixe para.
O peixe para.
E eu também.                                                            
                                          Ilustração: Erasmo Spadotto - cedida pelo Jornal de Piracicaba
                                         Publicado no Jornal de Piracicaba em 1º/6/2012

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