(caio
silveira ramos)
Tinha que ser assim: voltar flutuando nas palavras,
distraído. Nas palavras desastradas, que esperavam que eu voltasseindo,
mas se me veem, é só miragem. Estou aqui, estou lá, estou aí, mas pelas
palavras. Por meio delas, mas não só por causa de.
Nasci no ventre desse rio, mergulhado, inundado por ele, que me
pertencerá por mais quinhentas gerações, mesmo que eu beba de outras águas: no
meu sangue ele habita e corre de mim para as veias dos que vierem depois,
filhos, netos. Infinitos.
Saí do leito do rio para o das leis: do Largo Santa Cruz para o
de São Francisco. E mesmo acinzentado pelas marginais, as correntezas me
carregaram com tanta força que, quando nasceu meu menino, para embalá-lo mais
sereno, abriguei-me nas beiradas enconcretadas do riacho do Ipiranga.
Nesses anos todos de filho ausente ensuspirado, voltei de fato e
de corpo muitas vezes: vim rever os amigos, os parentes, redesenhar meus amores
de infância, me entristecer profundamente duas vezes e me reencontrar no aninhamento do colo da minha iara-mãe, da
abelha que produz mel e é dele feito. Iara que me colheu do rio para me enfeitiçar neste meu mirante de infinitos.
Infinitas são as visões deste mirante perpétuo: horizontes tão
longínquos que posso me ver pelas costas a contemplar as infinitas vozes de que
sou tecido. As almas envaraldadas que me embriagam todos os dias a
me dizer quem sou. E infinitos são os olhos que empresto para as órbitas
alheias a me levar pelo mundo.
Pelas palavras voltarei sempre a este mirante imaginário, para
falar daquelas vozes, daquelas almas, dos meus olhos embaçados de picumã, mas
viajantes pelos passos alheios. Para falar dos infinitos. Estarei aqui ou
em qualquer lugar destas páginas de papel ou de nuvem. Capinarei meus
verbos roubados das bocas caipiras-negras-italianadas (e de tantas outras
trazidas pelas reviradas do mundo). Derramarei uma centena de
letras cozidas pela letra miúda de meu pai nas margens dos seus livros
anoitecidos. Plantarei minhas palavras, garapadas no doce da cana ou na
aspereza da sua pele embagaçada.
E infinitos também serão os assuntos: palpitarei barbeiramente
sobre política, me embrenharei atrás do gol, cambalearei pelos sons e pelos
novelos de histórias reais ou deslavadamente mentirosas, pois todos os meus
caminhos sempre deram na rua do porto.
Por fim, decifrarei os sonhos dos leitores (sejam tais sonhos
verdadeiramente sonhados ou preferivelmente inventados), mas não o farei pelos
sotaques de deuses olímpicos ou freudianos. Minha decifração será
pela poesia, pois é esse meu sotaque, ainda que feito na prosa.
Meu sotaque nascido das águas redemoinhadas pelas pedras desse
rio onde o peixe para.
O peixe para.
E eu também.
Ilustração: Erasmo Spadotto - cedida pelo Jornal de Piracicaba
Publicado no Jornal de Piracicaba em 1º/6/2012
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