sexta-feira, 19 de setembro de 2014

O exercício da liberdade

(caio silveira ramos)

A música e a figura de Pixinguinha ajudaram a me construir. Ainda pequeno, um disco com suas composições, acompanhado de um encarte com sua história e diversas fotos, me enfeitiçou de tal maneira que resolvi trilhar os caminhos da flauta transversal para tentar me parecer um pouco com aquele homem humilde, feliz e genial.  Um homem simples chamado, por aqueles que o conheceram ou se deixaram encantar por sua música, de Santo.
Em Piracicaba, conheci, ainda que de longe, vários flautistas notáveis: Rafael Gobeth, Fábio Chaves, Elias Mello Ayres, Marcos Kiehl.   Mais tarde, ouvi de perto o talento fabuloso de Milton Rontani que, antes de me apresentar à música barroca, me ensinou os surpreendentes caminhos para os sonhos presentes n’“As Melodias da Cecília”, do Maestro Ernest Mahle.    E por falar em sonhos, acho que somente neles eu ouvia a flauta do pai do grande piracicabano Celso Woltzenlogel: ao passar pela rua José Pinto de Almeida, admirava o silêncio daquele senhor que da sacada de seu sobrado observava o movimento das calçadas.  Mas havia dias, quando eu menos esperava, que a voz de uma flauta atravessava serena o quarteirão e me instigava os sentidos.  Viriam daquele sobrado os sons que brotavam nas árvores, nos muros, nos telhados?  Sairiam daquele silêncio ancião as músicas que me acordavam para alegria?
No dia 15 de agosto deste ano de 2012, outra flauta, senhora de um som que atravessou todos os muros, todos os telhados, todos os mirantes, se não se silenciou (o que seria impossível), permitiu-se uma pausa um pouco maior: Altamiro Carrilho fechou o estojo de seu instrumento querido e cerrou os olhos como se um agudo cortasse nossa alma.   Para minha surpresa, portais da internet, jornais e outros veículos trataram muito pouco dessa pausa: pequenas notas de duas linhas e nenhum lamento.   Isso me fez lembrar o poeta Mário Quintana que teve a dupla infelicidade de morrer na mesma semana que um famoso esportista.   Nada contra o esportista, figura de valor, mas enquanto esse tinha dias e dias em toda mídia, Quintana teve, se tanto, três minutos no Jornal Nacional. 
Um país precisa mais de poesia que de uma linha de chegada e Altamiro soube nos oferecer versos desmedidos por meio do som de flautas e flautins.  Através deles, mais que música, Carrilho nos ensinou exercícios de liberdade.   Fabuloso compositor – como atesta o recente CD “Grupo Ó do Borogodó interpreta Altamiro Carrilho” (conjunto da querida pandeirista Roberta Valente) –, foi como intérprete que ele se tornou a síntese da prodigiosa linhagem de flautistas brasileiros que abarca Joaquim Callado, Patápio Silva, Pixinguinha, Benedito Lacerda, João Dias Carrasqueira, Carlos Poyares e tantos outros que vieram ou virão.  Prova disso é Corina Meyer Ferreira, que encantada ainda menina por um disco de Altamiro, soprou sua flauta mágica e enfeitiçou suas irmãs Lia e Elisa. E as três, escudadas pelo pandeiro do pai Eduardo e munidas de seus flautins, violões 7 cordas, bandolins, clarinetes, banjos, acordeons, escaletas, pianos e composições geniais, formam hoje um dos mais incríveis e importantes grupos de música instrumental do mundo: o “Choro das 3”.
Jean Pierre Rampal teria dito um dia que Carrilho era o maior do mundo, mas não há necessidade de bênçãos eruditas e impulsos classificatórios para sabermos que Altamiro nos ajudou a conjugar um verbo que aciona “o exercício da liberdade”: seu digitar preciso, suas soluções rítmicas e melódicas surpreendentes, seu sopro recriador nos fazem entender que altamirar é ir muito além do simples “libertar-se”, pois sentir a liberdade ultrapassa um simples ato.  É necessário o exercício.   Está altamirando, um menino que se espreguiça sob o sol, assim como uma moça, que, vestida com seus cabelos, cavalga num campo imaginário ou lê “Estrela da vida inteira” no Metrô.
A família do astronauta Neil Armstrong – outro que altamirou pelo espaço –, disse que quem quisesse prestar uma homenagem a ele, saísse numa noite clara, pensasse em Armstrong e enviasse uma saudação ao olhar para Lua.   Pois para homenagear Altamiro, basta um dia de sol e um assobio livre e feliz.
E você estará altamirando o mundo.

                                                     Ilustração: Erasmo Spadotto - cedida pelo Jornal de Piracicaba
Publicado no Jornal de Piracicaba em 31/8/2012


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