sábado, 27 de setembro de 2014

...E o tal do mundo não se acabou (ou O Elogio do fracasso)

(caio silveira ramos)

Se você está diante deste Mirante, deve ter percebido, como no antológico samba de Assis Valente, que o mundo não se acabou.
Vários filmes, séries e até desenhos animados já se utilizaram desse tema: diante do fim do mundo (ou de um exame médico equivocado que sentencia à morte), o personagem resolve fazer tudo que achava que não podia: diz adeus ao trabalho rotineiro cuspindo verdades até então inconfessáveis na cara do chefe, larga a esposa e, por fim, se entrega à farra. Bebe, se esborracha. E quando o mundo não se acaba, ele, arrependido, volta constrangido ao trabalho.  Retorna para casa, tentando pedir perdão.
Os livros de autoajuda e vários cursos de motivação estão aí para dizer a você: sua vida é medíocre.   Você deve ser um vencedor, você precisa enriquecer, você precisa ser um líder.  Você precisa chegar ao primeiro lugar.  Você precisa ser feliz, bem-sucedido e famoso, nem que para isso tenha que vencer um “reality show” no qual deverá cuspir aos quatro ventos que é melhor que seu adversário.  Depois será incentivado a eliminá-lo, demiti-lo.
Pise, tripudie, calunie, pense em si próprio, mostre que seu corpo é mais bem definido que o do seu adversário, pois o vencedor tem que ser um só e o outro não interessa. Afinal, hoje, quem é você? Você não é um vencedor: sua vida é um fracasso.  Por isso, na iminência do fim (da sua vida fracassada ou do mundo), conheça mil lugares antes de morrer e namore mil modelos-atrizes, logicamente deixando-se fotografar com elas em ilhas paradisíacas.  O que vale é a aparência, a velocidade, a barriga de tanquinho e os números. Muitos números.
A grande, a esmagadora maioria de nós, nunca será o vencedor: nunca chegará ao primeiro lugar.  Nunca irá enriquecer, nunca ficará famosa.  Chutará a bola, mas nunca será um jogador milionário.  E os livros de autoajuda insistirão em dizer: você deve vencer: lute, acredite, esse é o segredo. Como se aquele que sai de casa às 4 horas da manhã e se pendura dentro de um ônibus lotado para atravessar a cidade e trabalhar o dia inteiro, não lutasse.   Não acreditasse que as coisas podem melhorar.
Não se trata de conformismo, muito pelo contrário: devemos brigar por uma vida melhor, digna.  Devemos batalhar por um mundo justo, mais humano e sadio.   Mas a questão é: que tipo de vitória e sucesso os gurus da autoajuda querem vender?  Para eles, a luta do dia a dia para uma vida melhor não é vitória: eles querem vender para os outros (mas só desejam para si próprios) a glória, o sucesso, a fama, a grana.  Porém, um país não é construído pelos vitoriosos de revista, mas sim pelos “fracassados” que trabalham, seguem sua rotina, enfrentam filas em hospitais, recolhem lixo, constroem prédios, dão aulas, não saem nas fotos com modelos, passam seus dias sem fama e glória, estudando e investigando enclausurados em laboratórios de pesquisa.  Pois, então, um brinde a nós, os fracassados, um brinde ao fracasso libertador, ao fracasso de nossas vidas que empurra o mundo para frente.   Não precisamos da fama, das vitórias proclamadas em palestras e pseudolivros, que no fundo só servem para enriquecer bolsos alheios, vender ilusões e proclamar o individualismo mesquinho. 
Já que o mundo não acabou, é preciso lutar, sim, por uma vida melhor, mas não, ao observar os vencedores pré-fabricados e os líderes construídos com receita de bolo, menosprezar a vida comum, a rotina que nos faz ir em frente, a companheira exausta que nos estende os braços depois de um dia estafante.  Não aceitemos resoluções de começo de ano que os “vencedores” querem nos impingir apenas para nos humilhar.  Nós não queremos sucesso.  Nós somos livres. Nós queremos viver.
O mundo não acabou: simplesmente amanheceu novamente.

Ilustração: Erasmo Spadotto - cedida pelo Jornal de Piracicaba
Publicado no Jornal de Piracicaba em 4/1/2013



2 comentários:

  1. A Natureza está nos dizendo todos os dias que as coisas comuns, rotineiras é que são espetaculares.
    Basta perceber.
    Obrigado, Caio, por nos ajudar a perceber.

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