terça-feira, 30 de setembro de 2014

Shakespeare e a cachorrinha

(caio silveira ramos)
(para Naná)

Assim que desliguei o telefone, João Pedro me cutucou sério: “quem morreu?”.  Me surpreendi com sua pergunta: além de prestar atenção na minha conversa e captar o ponto central dela, ele, aos quatro anos, parecia ter consciência da gravidade da palavra “morte”.    Quando, desarmado, consegui responder que quem tinha morrido era a cachorrinha que morava com sua avó – cachorrinha que fora sua companheira durante boa parte das férias, ainda naquele mês –, os azuis profundos de seus olhos se encheram d’água e ele estendeu o beicinho, como faz quando, por causa do trabalho, não posso ver ao seu lado o seu desenho preferido na TV. Aquele olhar tristonho e o labiozinho trêmulo também me surpreenderam, porque além da gravidade da palavra, ele a associava, ao pensar na cachorrinha, ao seu sentido mais dolorido.
Mas desarmado fiquei de fato quando seus olhos, de repente, se tornaram muito vivos e, intrigado, ele voltou a perguntar: “ela não existe mais?”. Naquele instante ele suplantava o conceito simples de morte que absorvera desde o último mês de dezembro, quando a palavra começou a lhe instigar. Até então, a morte era associada a um inseto (formiga, barata ou “jonaninha”) visto inerte no meio da calçada: morrer era ficar parado.    Com a questão do “não existir mais”, ele transcendia a “inércia” da morte. Num só momento ele tomava consciência de que viver era existir e, ao mesmo tempo, que esse existir era finito e que havia a possibilidade da não existência. Ser ou não ser.
Assim, diante da sua pergunta, só pude responder: “sim, ela não existe mais”. Mas com a tranquilidade de quem já sabia a resposta, ele se deu por satisfeito naquele momento e já saiu correndo pela casa, com a serenidade de sempre. Lá foi ele existir.
Eu já devia estar acostumado com essas surpresas – aos três anos, brincando com uma calculadora, ele exclamou: “papai, os números não tem fim!” –, mas as crianças parecem feitas para nos restituir o deslumbramento.   E foi assim que, dias depois, ao ouvir que a cachorrinha teria dez anos, João Pedro, discordou: “não, a vovó disse que ela tinha onze anos. Mas ela não vai mais fazer doze”.
Então eu compreendi que aquela cachorrinha, que não existia mais, tinha cumprido sua função.  Além de companheira incansável de sua dona – verdadeira sombra que acompanhava cambaleante de sono os passos mais queridos nos despertares na madrugada; ou que esperava tristonha no alto da escada, se recusando a brincar com quem fosse, enquanto sua amada não voltasse da rua ou de viagem –, a cachorrinha tinha introduzido o menino nos mistérios da existência.
E enquanto meu pequeno hamlet de calças curtas corre pela casa, recriando-se em infinitas existências para além daquela sala, eu me lembro da cachorrinha que não existe mais.
Não mesmo? Eis a (outra) questão.

Ilustração: Erasmo Spadotto - cedida pelo Jornal de Piracicaba
Publicado no Jornal de Piracicaba em 8/2/13

segunda-feira, 29 de setembro de 2014

Algemirando (1): sobre muros e livros

(caio silveira ramos)
Para Dona Janda

Inicia-se aqui uma série de pequenas histórias sobre o Professor Algemiro Coelho Ramos.   Além das minhas próprias lembranças, as memórias de alunos, amigos e demais familiares também ajudarão a tecer outros relatos sobre esse homem simples e fundamental. 
O termo “Algemirando” remete a vários títulos de um dos gêneros musicais preferidos de seu Miro (o que já revela muito sobre ele): o Choro. Só para lembrar alguns clássicos, temos “Murmurando”, “Cochichando”, “Escorregando”, “Chorando baixinho”, “Vou vivendo”... Por que não, Algemirando?
A palavra também me lembra de uma história ocorrida há alguns anos: M. Dupont White, senhor dos mil gatos, exclamou ao me encontrar no Centro de São Paulo: “rapaz, você está se algemirrrando”.  Dupont White passava horas conversando com meu pai sobre política, geografia e literatura, e ficou surpreso ao notar como eu, que sempre me assemelhara ao lado materno da família, com o passar dos anos tinha me tornado tão parecido com seu Miro. 
“Algemirando” pretende dar a ideia de algo que está em curso, algo que está presente em nós e influencia nosso dia a dia.
 E modifica nossa vida. 
***
Quando o chamado “Muro da Vergonha” foi derrubado na Alemanha, no final de 1989, uma cena em particular me chamou a atenção: com livros nas mãos, dezenas e dezenas de moradores de Berlim Oriental correram pelas ruas a caminho da Biblioteca da parte Ocidental da cidade para devolver as obras emprestadas havia quase três décadas.  Finalmente aquelas pessoas podiam cumprir um dever que as inquietava desde a construção relâmpago daquele Muro que cerceava encontros entre amigos e parentes, e até a simples liberdade de devolver um livro à Biblioteca.  Alguns ali corriam com uma responsabilidade ainda maior: levavam nas mãos o compromisso de avós, pais, esposas e maridos falecidos, que, durante a vida ou antes da morte, fizeram seus parentes prometerem a devolução dos livros no dia em que caísse o Muro. E pela TV, eu pude ver a alegria daqueles alemães, que finalmente podiam cumprir suas promessas, enquanto voavam pela cidade unida.
Anos antes da queda do Muro, meu pai fez algo semelhante: visitando um antigo sebo piracicabano, deparou-se com um livro que o interessou muito.  Porém, quando folheou a obra, encontrou, pregado na contracapa, um pequeno envelope com uma ficha de empréstimo.  Surpreso, verificou, no restante do livro, os carimbos da biblioteca – não me lembro se do Departamento de História ou do de Letras –, da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – UNESP, Campus de Assis.  Indignado com aquela situação e com o autor desconhecido daquele verdadeiro crime contra o patrimônio público (e principalmente contra a busca pelo conhecimento por parte de um aluno ou professor), ele não teve dúvidas: comprou o livro, redigiu uma pequena carta e enviou tudo pelo correio, ainda naquele dia, para o respectivo Departamento.  Ele até recebeu uma singela resposta de agradecimento, mas não estava preocupado com isso.
Tenho certeza que se morasse na Alemanha Oriental naquele fim de 1989, ele seria um daqueles que correria feliz pelas ruas para devolver finalmente um livro emprestado, mas que não fora restituído à Biblioteca durante três décadas por causa do Muro de Berlim.    Não, talvez não.  Destemido como era, talvez ele não tivesse esperado a queda do Muro: antes disso, ainda que acreditasse em um mundo mais justo e menos desigual – e, portanto, cresse nos mesmos sonhos de muitos daqueles que fizeram tantas revoluções na Europa do século XX –, ele teria enfrentado, com o livro debaixo do braço, o cimento, o aço, os guardas, as balas e até a morte.
E em paz com sua consciência, vivo ou morto, ele daria mais uma vez a prova de sua fé inabalável no ser humano e na necessidade de espalhar sua sede de conhecimento ao mundo todo. 

Ilustração: Erasmo Spadotto - cedida pelo Jornal de Piracicaba
Publicado no Jornal de Piracicaba em 25/1/2013

domingo, 28 de setembro de 2014

Mãos quentes

(caio silveira ramos)


Dia 11 de janeiro seria aniversário da minha irmã Ruth. Não vou, neste Mirante, contar que ela, docemente, me acarinhava desde pequeno.   Nem vou dizer que, quando me buscava na escola, me pagava uma coxinha de frango com guaraná caçulinha.  Também não vou escrever que ela dava aulas de violão e com o pagamento me comprava presentes e gostosuras.  Nem que, nas manhãs de sábado, se deitava na minha cama (ou eu na dela) e ríamos das deliciosas bobagens que inventávamos contando ou cantando.  Poderia contar que ela me deu seu primeiro filho para batizar, meu querido Renato.  Agora não.  Essas histórias ficam para depois.
Agora quero apenas lembrar que ela – que redigiu um texto tão comovente sobre nosso pai e tantas vezes escreveu sobre sua especialidade, a odontopediatria –, em seu último texto para o Jornal de Piracicaba, discorreu sobre a força da vida e sobre a alegria de sentir sua mão aninhada por mãos quentes.  Em seu derradeiro Natal, ela me estendeu os braços e eu entendi o seu recado. Minha irmã me sorriu, agradecendo minhas mãos, que nem deviam estar tão quentes assim, pois o medo do futuro nos congela até os ossos.
Agora quero apenas contar que sua filha Paula, senhora das mil palavras (que por ela fluem e ganham o espaço com liberdade e alegria), se achegou do lado de cá deste Mirante: Paula veio estudar em São Paulo.
Paula, que, ainda menina, enfrentou valente e altiva uma das noites mais frias de um mês de maio memorável, e me trouxe, entre suas mãos quentes, as alianças do meu casamento, agora chega mais perto dos meus olhos.   Chega, não para que eu possa lhe estender as mãos, mas para dar as suas, e aquecer mais que a minha saudade.  Ela vem para aquecer a minha alma.
E de mãos dadas, lançaremos pelo céu da fria cidade cinza, o calor azul de um sorriso inesquecível que nos aquece.  E que nos manterá aquecidos por toda vida.

Ilustração: Erasmo Spadotto - cedida pelo Jornal de Piracicaba
Publicado no Jornal de Piracicaba em 11/1/2013


sábado, 27 de setembro de 2014

...E o tal do mundo não se acabou (ou O Elogio do fracasso)

(caio silveira ramos)

Se você está diante deste Mirante, deve ter percebido, como no antológico samba de Assis Valente, que o mundo não se acabou.
Vários filmes, séries e até desenhos animados já se utilizaram desse tema: diante do fim do mundo (ou de um exame médico equivocado que sentencia à morte), o personagem resolve fazer tudo que achava que não podia: diz adeus ao trabalho rotineiro cuspindo verdades até então inconfessáveis na cara do chefe, larga a esposa e, por fim, se entrega à farra. Bebe, se esborracha. E quando o mundo não se acaba, ele, arrependido, volta constrangido ao trabalho.  Retorna para casa, tentando pedir perdão.
Os livros de autoajuda e vários cursos de motivação estão aí para dizer a você: sua vida é medíocre.   Você deve ser um vencedor, você precisa enriquecer, você precisa ser um líder.  Você precisa chegar ao primeiro lugar.  Você precisa ser feliz, bem-sucedido e famoso, nem que para isso tenha que vencer um “reality show” no qual deverá cuspir aos quatro ventos que é melhor que seu adversário.  Depois será incentivado a eliminá-lo, demiti-lo.
Pise, tripudie, calunie, pense em si próprio, mostre que seu corpo é mais bem definido que o do seu adversário, pois o vencedor tem que ser um só e o outro não interessa. Afinal, hoje, quem é você? Você não é um vencedor: sua vida é um fracasso.  Por isso, na iminência do fim (da sua vida fracassada ou do mundo), conheça mil lugares antes de morrer e namore mil modelos-atrizes, logicamente deixando-se fotografar com elas em ilhas paradisíacas.  O que vale é a aparência, a velocidade, a barriga de tanquinho e os números. Muitos números.
A grande, a esmagadora maioria de nós, nunca será o vencedor: nunca chegará ao primeiro lugar.  Nunca irá enriquecer, nunca ficará famosa.  Chutará a bola, mas nunca será um jogador milionário.  E os livros de autoajuda insistirão em dizer: você deve vencer: lute, acredite, esse é o segredo. Como se aquele que sai de casa às 4 horas da manhã e se pendura dentro de um ônibus lotado para atravessar a cidade e trabalhar o dia inteiro, não lutasse.   Não acreditasse que as coisas podem melhorar.
Não se trata de conformismo, muito pelo contrário: devemos brigar por uma vida melhor, digna.  Devemos batalhar por um mundo justo, mais humano e sadio.   Mas a questão é: que tipo de vitória e sucesso os gurus da autoajuda querem vender?  Para eles, a luta do dia a dia para uma vida melhor não é vitória: eles querem vender para os outros (mas só desejam para si próprios) a glória, o sucesso, a fama, a grana.  Porém, um país não é construído pelos vitoriosos de revista, mas sim pelos “fracassados” que trabalham, seguem sua rotina, enfrentam filas em hospitais, recolhem lixo, constroem prédios, dão aulas, não saem nas fotos com modelos, passam seus dias sem fama e glória, estudando e investigando enclausurados em laboratórios de pesquisa.  Pois, então, um brinde a nós, os fracassados, um brinde ao fracasso libertador, ao fracasso de nossas vidas que empurra o mundo para frente.   Não precisamos da fama, das vitórias proclamadas em palestras e pseudolivros, que no fundo só servem para enriquecer bolsos alheios, vender ilusões e proclamar o individualismo mesquinho. 
Já que o mundo não acabou, é preciso lutar, sim, por uma vida melhor, mas não, ao observar os vencedores pré-fabricados e os líderes construídos com receita de bolo, menosprezar a vida comum, a rotina que nos faz ir em frente, a companheira exausta que nos estende os braços depois de um dia estafante.  Não aceitemos resoluções de começo de ano que os “vencedores” querem nos impingir apenas para nos humilhar.  Nós não queremos sucesso.  Nós somos livres. Nós queremos viver.
O mundo não acabou: simplesmente amanheceu novamente.

Ilustração: Erasmo Spadotto - cedida pelo Jornal de Piracicaba
Publicado no Jornal de Piracicaba em 4/1/2013



sexta-feira, 26 de setembro de 2014

O Natal interior

(caio silveira ramos)

Peço licença aos que não gostam do Natal por motivos estéticos e religiosos; aos que odeiam o consumismo da época e a hipocrisia de alguns; aos que se sentem agredidos pelas luzes, enfeites e alegrias impostas; aos solitários que veem aumentada sua solidão; aos que se lembram de pessoas e tempos passados e são atravessados pela melancolia.  Mas confesso minha fascinação pelo Natal e não consigo passar por esses dias sem me sentir correndo descalço pelo chão, esperando o mundo chegar à meia-noite.
Na infância, meus dezembros sempre foram encantados: a casa se enchia de férias, música e um presépio tão aguardado, que meus sonhos passados não conseguiram dar conta: ele persiste em mim, recheando meus sonhos presentes e os que virão.
Quando chegava o tempo certo (ele sempre sabia o tempo certo), meu pai pegava uma grande e velha lousa no quartinho dos fundos, e a colocava sobre uma mesinha alta num dos cantos da sala. A lousa era forrada com jornal e emoldurada com faixas de cartolina pregadas com percevejos para que a serragem escura colocada sobre todo o quadrado não escapasse pelas bordas e sujasse a sala.  Coladas na cartolina, folhas de papel verde desciam até o chão, encobrindo as pernas da mesa e a vitrolinha que, abrigada pela tábua inferior da mesa, quase rente ao chão, soava músicas de Natal do mundo inteiro e a Dança da Fada Açucarada.
E sobre o jornal que cobria a lousa, meu pai esculpia meu sonho: chão, relevos e morros cobertos de serragem e musgo, caminhos trilhados de terra mais escura, moinho de vento feito de argila com pás azuis de delicada carpintaria, assim como o monjolinho.   Cacos de espelho viravam lagos de patos, onde carneirinhos bebiam água. Mas havia outros cordeirinhos espalhados por todos os cantos e nas mais diversas poses. E um pastorzinho tocando flauta.   No fundo do cenário, em que todos os caminhos se encontravam, ficava o estábulo feito de galhos de caquizeiro, tábuas finas e cobertura de palha, onde se escondia uma pequena lâmpada que iluminava a noite e um anjinho de asas abertas dependurado na frente da construção. Lá dentro, um boi, um burrinho e as figuras de José e Maria olhando para a manjedoura ainda vazia feita de tabuinhas e palha.   Lá longe, bem longe, vindos de três caminhos distintos, os três Reis Magos (um deles premiado com um camelo: só havia uma peça): a cada dia eles eram colocados um pouquinho pra frente, até que se encontravam no meio do presépio para chegarem juntos no dia 6 de janeiro.   Mas antes disso, durante todo o mês de dezembro, reunidos por minha mãe, um grupo de meninos talentosos (acompanhados por minhas irmãs, igualmente inspiradas com seus instrumentos) ensaiava músicas de Natal que, pouco antes do dia 24, se hospedavam com todos os seus sons nas casas de amigos e parentes. Espalhados pelo mundo, esses meninos – Francisco Amstalden, Luís Fernando Guimarães (e, em participações especialíssimas, seu irmão Paulo Celso), Washington Barella e Guilherme Garbosa –, hoje músicos e professores brilhantes, devem sonhar com esses encontros quando se aproxima a noite de Natal. A noite.
No dia 24 de dezembro, eu tentava dormir à tarde para que a noite chegasse mais depressa, mas a ansiedade e o cheiro de peru assando me faziam perambular pela casa até a hora de ajudar a arrumar a mesa, tomar banho e esperar a ceia. Então, depois de rezarmos juntos, sentávamos à mesa retangular da copa, sempre na seguinte posição (no sentido horário, a partir da “cabeceira do meio-dia”): minhas irmãs Ester, Raquel e Ruth, minha mãe, eu e meu pai.   Ele abria um espumante e destrinchava o peru de gosto inesquecível, que comíamos com farofa enriquecida com pedacinhos de maçã. E vinham as frutas, os doces e o refrigerante liberado (talvez uma Tubaína).  E vinha o desejo que a meia-noite chegasse logo para que pudéssemos abrir os presentes.   Mas antes, eu tinha uma missão.
À meia-noite em ponto, com a casa iluminada apenas por aquela lampadazinha de dentro do estábulo, meu pai me erguia e eu colocava a imagem do Menino Jesus de braços abertos na manjedoura.
E dentro de mim, até hoje, entre as luzes e o sorriso do meu pequeno filho, feito um anjo de folhinha, aqueles Natais sobrevivem. E ao me lembrar das pessoas e dos tempos passados, não sou atravessado pela melancolia.  Meu Natal interior me faz flutuar sobre o presépio para colocar o Menino Jesus na manjedoura.
Então ele me sorri de braços abertos.
Ao lado do meu anjo de folhinha.

 Ilustração: Erasmo Spadotto - cedida pelo Jornal de Piracicaba
      Publicado no Jornal de Piracicaba em 21/12/2012



quinta-feira, 25 de setembro de 2014

Água Cristalina

(caio silveira ramos)

João Borba lançou, em 2012, seu CD “Eu comigo e meus amigos“.    João Borba recebeu uma crítica profundamente elogiosa ao seu CD no jornal O Estado de S. Paulo.  João Borba é hoje uma lenda viva da Velha Guarda do Samba Paulista.  João Borba é um dos maiores nomes do samba.  João Borba é piracicabano.  Mas Piracicaba pouco conhece João Borba.
Eu também não conheci João Borba em nossa cidade: fui encontrá-lo na Capital, nos corredores do prédio do nosso trabalho.  Mas só fui conhecê-lo mesmo quando o expediente terminou e nos esbarramos numa roda de samba: ele com sua voz soberana e eu com o meu cavaquinho mambembe.    E foi só João Borba cantar um primeiro samba para eu sentir que encontrara um amigo querido e eterno.  Pedi timidamente que entoasse “Linda Borboleta”, de Paulo da Portela e Monarco, e ele abriu o sorriso e a voz como um abraço fraterno e infinito: “Linda borboleta/ não seja buliçosa/ deixa minha rosa que tão linda está no galho/ é o meu prazer ao amanhecer/ fazer-lhe visita, vê-la banhada de orvalho/ quando vem o sol/ cobre ela de ouro: no jardim do pobre é um tesouro”.  E nos tornamos irmãos para sempre.
Em seu CD, eu sou um dos seus honrados amigos: nossa parceria “Água Cristalina” está lá lindamente vestida por sua voz, que baila com a de Dona Inah, outro mito do samba paulista tardiamente descoberto pela crítica.   Com a suavidade que evoca os duetos de Cascatinha e Inhana, Borba e Dona Inah entoam com sentimento o nosso samba-rural que fala de um rio que teima em existir dentro da alma. O rio de nossos avós que ainda queremos tomar pelos olhos e pela boca. 
Nas outras faixas, Borba, com a sabedoria de seus quase oitenta anos, exala sua música com a maestria da sua voz e de seu talento para nos fazer respirar o samba e a vida.    E “Emossamba” e “Carente”, só para citar dois clássicos da noite paulistana criados por ele, agora encontram seus registros definitivos e passam a correr tranquilamente por nossas veias.
Vejo agora uma foto de meu filho diante de João Borba – aliás, um dos Joões que inspirou o nome do pequenino: no colo negro e majestático daquele grande e fraterno amigo, meu menino parece conversar seriamente sobre a vida. 
Mas olhando bem de perto, descubro que a conversa é outra: de dentro da foto, uma melodia doce parece escorrer pela sala e ganhar a rua.   De leve, ouço um tamborim sincopando o asfalto.
E dessa nova parceria nascerá um samba eterno.

 Ilustração: Erasmo Spadotto - cedida pelo Jornal de Piracicaba
                         Publicado no Jornal de Piracicaba em 6/12/2012



quarta-feira, 24 de setembro de 2014

Sobre livros e amores

(caio silveira ramos)

Lá vai meu filho, do alto dos seus quatro anos, se divertir com um tablet: o pequeno, que brinca de brincar com os números e com os movimentos das peças do xadrez, tem na ponta dos dedos – ágeis como seus olhos –, as coisas que gosta.   Logicamente não é sua única diversão: ele se esbalda com os amigos da escola, desenha, faz suas artes e entre turras e ternuras com sua inseparável amiga Fezoca, tenta decifrar as mulheres. E também joga bola, brinca com seus carrinhos, joga bola com seus carrinhos – inventou um curioso jogo em que substitui os “botões” pelos pequenos possantes –, corre por seus mundos imaginários, vê desenho e futebol pela TV, canta (e improvisa) como se sua vida tivesse um fundo musical e lê seus primeiros livros de pano, borracha e papel.   Mas a tranquilidade com que esse menino, fascinado pelo tempo revelado pelos relógios, transita entre as letras impressas e as eletrônicas, aponta para o meu futuro inevitável.
Ler na tela do computador nunca me pareceu muito confortável, mas com a chegada dos tablets, a situação começa a melhorar: além de se poder aproximá-los dos olhos – uma oftalmologista, comentando sobre minha visão, me consolou: “Deus te deu outros dons, meu filho” –, também (e com facilidade) já é possível virar páginas em suas telas sensíveis ao toque, colocar marcadores de leitura, localizar trechos específicos e poupar árvores e vastos espaços em nossas estantes.   Os aparelhos exclusivos para leitura de livros digitais (os e-Readers) têm uma vantagem sobre a maioria dos tablets com telas de cristal líquido: eles não têm iluminação interna, o que torna a compulsação (e porque não, a compulsão) confortável até debaixo do sol. Por outro lado, o acesso a outras mídias por meio dos tablets convencionais ainda inibe a venda dos e-Readers. De qualquer forma, se o número de livros eletrônicos em Língua Portuguesa ainda é tímido (até pelo seu preço abusivo), a leitura de jornais e revistas por meio dos tablets já ganha espaço e não assusta quase mais ninguém. A não ser, também, pelo seu (ainda) alto preço.
“Os livros são objetos transcendentes/Mas podemos amá-los do amor táctil/Que votamos aos maços de cigarro”: certo, você pode detestar cigarros, maços e até o autor do verso, Caetano Veloso, mas é impossível ignorar sua iluminação poética ao nos expor esse amor tátil (e em alguns casos até olfativo) que o tal objeto transcendente chamado livro tem.
Minha vida é repleta de livros desde a infância: o escritório do meu pai com suas prateleiras de metal e madeira (algumas ampliadas artesanalmente por ele próprio) cheias de livros ao alcance da mão como cachos de uvas; as estantes abarrotadas de Direito e fantasia que lotavam meu quarto de estudante; as paredes do fundo da minha sala recheadas com tantos volumes que chego a pensar que, enquanto durmo, eles se reproduzem e começam a contar suas próprias e inéditas histórias.    Porém, apesar de tantos livros gravitando em minha vida, não sou um bibliófilo, tecnicamente falando, isto é, um colecionador de livros raros e preciosos.   Se sou um amante de livros, meu amor é moldado muito mais pelo encanto de seus conteúdos, de suas histórias e sons, que pelo prazer tátil, olfativo e contemplativo.  Por isso, em meu futuro inevitável eu prevejo os livros eletrônicos sem desprazer e medo: mais valem mil histórias voando que uma rara primeira edição na mão.
Porém, quando vejo meu filho, com as mãozinhas postas para trás, diante das paredes do fundo da sala, com suas estantes de alto a baixo repletas dos sonhos de seu avô, dos meus (muitas vezes morando também dentro daqueles sonhos) e dos seus próprios sonhos (esses despretensiosamente brincando nas prateleiras mais baixas, afinal, as uvas, para continuar alimentando, precisam permanecer ao alcance das mãos), entendo que os livros de papel resistirão por muito tempo.  Fascinado pelos velhos livros da estante, meu filho sabe que os sonhos de seu avô e de seu pai estão ali esperando seus olhos e seu abraço.   
Esperando que os sonhos do menino cresçam a tal ponto que não apenas consigam engolir os sonhos mais velhos e tomá-los como seus.  Mas que possam também se multiplicar tanto, tanto, que consigam criar novos sonhos em almas alheias.

***

Claro que estantes repletas, organizadas ou não, ainda nos fascinam e nos convidam prazerosamente às delícias da leitura, mas de nada adiantam prateleiras onde os livros ficam quietos, engaiolados como aves raras: os livros precisam voar pelas almas, invadir mentes.   Sejam eletrônicos, flutuando pela rede, ou de papel, circulando por mãos e olhos, os livros carecem viver e gerar vida.
Ainda que muitos livros caminhem para o papel em aparências e cores cada vez mais convidativas, se obras novas vierem em formato eletrônico, que se instalem: quero conteúdos.   Se obras antigas forem acessíveis pela rede, que sejam cada vez mais enredadas.   Não tenho pretensões de colecionador: quero o livro consumido, lido, circulando.   No transgressor “A reforma da natureza”, o gênio de Monteiro Lobato fez sua Emília tornar os livros comestíveis: o “livro-pão” mataria as duas fomes do ser humano e ainda economizaria espaço.  Metáfora ou não, o fato é que o Marquês de Rabicó acaba por deglutir uma obra querida de Dona Benta, o que nos faz pensar que, se não todas, algumas obras de papel se revestem não só do amor tátil cantado por Caetano Veloso, mas do amor olfativo, contemplativo. Sentimental.
Assim, embora eu admita que alguns livros saiam de minha estante e ganhem o mundo, há outros que imagino tê-los ao alcance das mãos e dos olhos por minha vida afora.   Não pela raridade, mas pelos sentidos.    São livros velhos, comprados em sebos, cheios de histórias próprias e recheados com os rastros de seus donos anteriores. Ou são livros já desgastados, mas presentes de infância que trazem a aventura do enredo e o carinho de dedicatórias amorosas: um Júlio Verne com a inscrição afetuosa do pai, lembranças das nossas viagens pelo centro de São Paulo; um Rudyard Kipling com beijos da mãe: ponte entre a infância dela e a minha ou simplesmente um prêmio por uma conquista perdida no tempo.
No meu aniversário, ganhei do meu compadre Carlos Loureiro – um dos maiores e corajosos Defensores Públicos do Brasil – uma linda antologia (“Poesia até agora“ – 1948 – Livraria José Olympio Editora), de Carlos Drummond de Andrade.  Para meu espanto, o livro traz a assinatura original do poeta.    Não sabe, talvez, meu amigo, que o que torna o presente valioso para mim, mais que a letra do escritor, são os próprios poemas avassaladores criados por Drummond aliados à busca trabalhosa e delicadamente fraterna que o padrinho do meu filho deve ter feito para me colocar tal presente nas mãos e no sorriso.  O que me prende ao livro não é sua raridade, mas a poesia plena feita por dois Carlos que têm seus corações maiores que o mundo.

***

E dessa forma segue minha estante: cheia de poesia e estórias (como gostava de grafar Guimarães Rosa) em cada lombada, em cada página, em cada capa. 
Até que esbarro em uma coleção antiga de nove volumes: uma coleção de Machado de Assis, da Editora Cultrix, organizada e anotada por Massaud Moisés.   Retiro o volume que apresenta uma coletânea de contos do Bruxo (ah! Como os bruxos desaprenderam a arte da escrita...): passeio com a mão pela capa verde-rugosa e sinto na ponta dos dedos a pena gravada em dourado no canto direito inferior.  A paz se aproxima e eu abro o livro: primeiro vem o aroma, o aroma inconfundível, antigo, que me traz uma sensação que mistura serenidade e proteção. Em qualquer lugar do mundo conseguiria distinguir aquele cheiro.    Em qualquer momento da vida acho que serei capaz de recriá-lo na memória.   Na palma da mão, as páginas; no fundo dos olhos, as letras cheias de sentidos.  Vou para o começo: a assinatura de meu pai e a data em que leu o livro pela primeira vez quando morava em São Carlos. E logo abaixo, a dedicatória feita anos depois: “para o Caio em Piracicaba – 07/04/83 (12 anos)”.   Uma dedicatória simples, séria, diferente das cheias de graça que ele costumava fazer.  Mas é que, além de ter sido repetida nos nove volumes, ela representava um rito de passagem: naquele momento, me dando de presente sua amada e antiga coleção de Machado, meu pai me ofertava a chave da maturidade da vida e das letras: eu agora podia ler o mundo todo, sem fronteiras ou censuras.   
Em outros volumes da coleção, reencontro a letra miúda de meu pai nas margens das páginas: comentários, anotações de frases, pequenos caminhos que gosto de percorrer como se conversasse com ele novamente.  Mas essa lembrança de conversa, de vozes, me faz voltar aos contos. Lembro-me da tarde de férias em que, deitados em sua cama, ele me leu “Miss Dollar”, “A Cartomante”, “Uns braços” e “Conto de escola”.  Antes de cada leitura, ele me chamava a atenção para beleza daquilo, das construções dos personagens, das frases, dos sentidos.  Depois lia, lia: sua voz grave acariciava o texto e o meu espanto de menino encantado.
É curioso que nos momentos de angústia, tristeza ou medo eu procure aquela coleção para me pacificar.  Intriga-me que a dita ironia pessimista de Machado de Assis tenha o dom de me trazer à tona.  Nas mãos sinto a capa verde-rugosa, a pena gravada em dourado, as páginas amareladas. A letra miúda de meu pai. A dedicatória dele esperando que eu um dia faça idêntica inscrição para meu filho naqueles mesmos volumes: novas pontes.  Vou buscar o cheiro, o cheiro eterno.   O cheiro das páginas, o cheiro do tempo, o cheiro das palavras: vou buscar, no talento do bruxo, a beleza dos sentidos, e esses sentidos me fazem voltar para casa seguro.   Começo a ler e ouço o que ninguém em nossos dias pode ouvir: a voz de Machado.
A voz de Machado é a voz do meu pai naquela tarde de férias.  Ele me lê um conto, dois, um romance inteiro.
Até que, novamente sereno, eu adormeço em seu ombro.

Ilustração: Erasmo Spadotto - cedida pelo Jornal de Piracicaba
Publicado no Jornal de Piracicaba em 9/11/2012 e 23/11/2012


                                          

terça-feira, 23 de setembro de 2014

Malaco Agitadeiro

(caio silveira ramos)

Texto originalmente publicado no encarte do CD “Casa de Malandro”, de Hermes Petrini, de 2010. O texto chega agora a este Mirante, revisado, atualizado, ampliado e remexido. Agite(-se) antes de ler.

Quando, há quase 20 anos-luz, bateu no meu escutadô de batucada e promessa de amor o samba “Filosofia de Bar, acendeu um lampião na minha cachola: de-quem-de-quem-é essa obra-primona sincopada?  De quem é esse sambaço que usa e abusa das bebidas pra construir uma história inteirinha e risonhada, que bota num balaio tropical o cáiser e o Che Guevara?   Pois naquele dia me falaram que o tal samba era justamente do cantador que estava ali na minha frente empunhando a viola e atendendo pelo nome de Hermes Petrini.  Tava eu ajudando a arranhar o cavaco pros Menores de Assis, rapaziada sabidaça que fazia uma roda de samba lá pros lados da Igreja dos Frades (e que metamorfoseava até bula de remédio em samba-enredo), quando me apresentaram o mano da Helaine. E o que a moça tinha de formosura e denguice, ele tinha de talento, música na veia e liderança, pois sendo pouco mais velho, já era o guruzão daquele bando todo.
Ali e depois fui conhecendo aquele bamba, que além de talentoso, tem um coração de rodear o mundo e ainda abraçar a Lua, pois se tornou camarada de horas tantas, músicas muitas e conversas infinitas.  Um sujeito capaz de transformar uma torneira quebrada em prova de amizade e samba de primeira.
E o danado ainda joga nas onze, bate o escanteio, cabeceia na área, defende debaixo da meta, recolhe – humilde como um gandula –, a bola do lado de fora, e ainda dá as instruças do banco: manda bem no canto, na corda, no coro e nas tecladagens; compõe, arranja e interpreta.   E não para por aí: feito polvo habilidoso, dá aula de música pra meninada, inventa serenata, capricha no choro e incendeia baile e arrasta-pé.  E tem outra: ele ainda toca em casamento, fazendo a noiva se enformosurar ainda mais na igreja e a festa terminar com os convidados dançando no teto ao lado do lustre.  Se bobear, seu Hermes anima até velório e convence o morto a saltar de banda, desmaiar três senhoras e sair riscando o chão do recinto.
E não é que o malandro se metamorfoseia até em pai de canal educativo?  Pois o fulano criou na paz e na alegria suas duas meninas, hoje moças cheias de talento e belezura (devem ter puxado a mãe Zahira...) capazes de fechar o comércio da rua Governador e fazer o sujeito fugir até da Boa Morte.  Isso sem contar que uma delas, a Carina Nina Ninoca da Paçoca, feito o pai, se bordou de cantoria e danou-se a enfeitiçar montanhas e mundos com suas bagualas e coplas.
Mas o tal Hermes é mesmo um vagulino estranhoso, que labora sábado, domingo, feriado e dia santo.  Pois malaco que é malaco sempre tem que estar na contramão: se a honestidade hoje caiu na valeta, o marginal da vera é aquele que vai lá no meio-fio esgotado e toma a água da chuva que escorre pelos cantos, quase perdida, justamente pra resgatar a danada da honestidade, trazer a dita pra tona e escancará-la na careta da vilanada.
Na linguagera modernosa, Hermes Petrini é um “agitador cultural, que vai além da música, irradiando movimentos, tecendo todos os gêneros, dançando na corda ou em cima da lona do circo.  Mas pra mim, ele é um Malaco Agitadeiro, subvertendo gostos, desgostos e maus gostos. Livre, talentoso e valente.
Como todo malandro de responsa tem que ser.

                       Ilustração: Erasmo Spadotto - cedida pelo Jornal de Piracicaba
                                    Publicado no Jornal de Piracicaba em 2/11/2012

segunda-feira, 22 de setembro de 2014

Coisas interessantes

(caio silveira ramos)

Os pais da Anita – irmã de Bruno, o cavaleiro –, comentaram que, de um Mirante muito, muito distante, um certo escrevinhador estaria tratando de várias coisas bem interessantes. Ouvindo isso, Anita – irmã de Bruno, o destemido –, empertigou-se toda do alto dos seus sete anos de olhos azuis transbordantes e emiliou: “então por que ele não escreve sobre mim? Eu sou uma coisa bem interessante!”
Pois para escrever sobre “essa coisa bem interessante” é preciso brincar no tempo, no tempo em que a avó da Anita – Anita, irmã de Bruno, o viajante –, teve que sair ainda menina da casa dos pais em Piracicaba para dar aulas no Município de Colina, onde morava a irmã mais velha, já casada.    Por ser aquele tempo difícil, as meninas que se formavam professoras partiam muito novas para trabalhar fora de suas cidades. E por não terem idade suficiente para os concursos de ingresso no Magistério, muitas acabavam dando aulas em fazendas e sítios perdidos no mapa, e enviavam todo o salário recebido para ajudar no sustento da família, incluídos aí, os gastos com os estudos dos irmãos menores. Muito se fala na força do movimento feminista da década de 1960, mas ainda é preciso um estudo profundo sobre essas mulheres-meninas brasileiras da primeira metade do século XX que alfabetizaram gerações com doçura e coragem desbravadora.
Além de tudo isso (morar e trabalhar longe da família desde muito cedo, não ter idade para prestar concursos, enviar todo o dinheiro para ajudar nas despesas da casa dos pais), a menina que um dia seria avó da Anita – Anita, irmã de Bruno, o violinista –, tocava piano lindamente, mesmo que tivesse que se exercitar num velho e alquebrado instrumento de mecanismo estrambólico e terminal.  Mas em Colina, não era possível ouvir o “pianar” faceiro da menina: onde morava não havia sequer uma caixinha de música.  Eis que a bisavó da Anita – Anita, irmã de Bruno, o curioso –, encontrou nas ruas de Piracicaba com seu Pousa, dono da antiga loja de instrumentos “A Musical”, e perguntou quanto custaria um piano bem simples, já que sua filha, além de ter que morar longe dos pais, estava também distante de seu brinquedo preferido.  Ao saber do preço proibitivo para sua família, aquela senhora sorriu e disse que os dedos da menina teriam que esperar mais algum tempo para passear pelas teclas novamente.   Conhecendo o talento da garota e ciente de que dedos encantados não podem deixar de passear, sob pena de esquecerem seus caminhos, seu Pousa também sorriu. E alguns dias depois, um piano Jersey, desses mais baixos e compactos, para apartamentos, apareceu em Colina, lá na sala da casa onde morava a menina.  Junto com a alegria, ela recebeu o seguinte recado: que pagasse quando pudesse.   Mas a tal menina, mesmo comovida com a generosidade, era grata e gostava das coisas muito certas. E foi assim que, a partir daquele dia, seu salário (que continuou sendo enviado integralmente para a família) agora tinha uma parte religiosamente reservada para o pagamento mensal do piano sonhado.  E satisfeito, seu Pousa sorriu mais uma vez.
Não passou muito tempo, a irmã mais velha, por causa do trabalho do marido, teve que se mudar de Colina, e a menina, que ainda não tinha idade para prestar o tal concurso para o Magistério, teve também que se mudar, só que dessa vez para a casa de um irmão que já morava com a esposa em Londrina, no Paraná.   E lá se foi a menina de novo para sua rotina de morar-longe-dos-pais-aulas-infinitas-salário-todo-para-a-família-e-tocar-piano.  Não, esperem: tocar piano não mais, que seu instrumento não pôde ir para Londrina e acabou ficando na casa da família em Piracicaba. As irmãs mais novas é que se alegraram dessa vez.
Então a menina passou no concurso, foi morar em Santo Anastácio, interior de São Paulo e, ela e seu piano, agora já totalmente pago, viveram felizes para sempre, certo? Certo, menos o final feliz: o pai da menina achou que devia enviar o instrumento para sua primeira neta aprender a tocar piano. Bom, na verdade, verdade mesmo, talvez pretendesse apenas dar uma prova de gratidão ao genro, marido da filha mais velha, que lhe prestara um grande favor. Qualquer que fosse o motivo, porém, lá se foram todas as teclas para o Município de Assis.
A futura avó da Anita – Anita, irmã de Bruno, o conquistador –, agora já uma moça, foi seguindo sua carreira de professora, desbravando cidades e complementando a renda com aulas nas residências de alunos que tivessem piano. Mas em casa, quase em segredo, só podia exercitar seus dedos sobre um teclado de cartolina. E lá foi ela para Palmital (sem o piano), para Paraguaçu Paulista, onde encontrou seu grande amor e teve a primeira filha (mas não o piano), para Araraquara – período difícil, quando precisava viajar todos os dias para lecionar, pois morava em São Carlos, onde nasceu a segunda filha (mas não apareceu o piano) –, e finalmente para Piracicaba, lugar em que logo no primeiro ano de estada chegou a terceira filha, mas não o piano.
Certo que em suas aulas na Escola de Música do Maestro Ernst Mahle, seus dedos se encontravam com o instrumento querido.  Mas ali eles não podiam passear livremente.  Então, se naquele final da década de 1960, ainda eram raros e muito caros os chamados “teclados”, em casa, quando o tempo se distraía, ela seguia tocando sobre as teclas desenhadas na cartolina, ouvindo os sons com a alma e com os olhos que desnudavam as partituras. 
Foi então que aconteceu algo novo, pouco antes de nascer seu quarto filho: o marido da professora, mestre das palavras, reuniu forças e economias para presentear sua amada com um belo e sonoro piano alemão H. Kriebel.
Mas quando a tão interessante Anita – irmã de Bruno, o patrulheiro do futuro –, entrará nessa história?
Calma, calma, isso ficará para daqui a pouco.
Por enquanto, estamos naquele dia longínquo, quando a tal professora de piano dobrou finalmente seu teclado de cartolina, e depois de mais de vinte anos abriu com cuidado a tampa de seu brinquedo, acariciou com a ponta dos dedos aquele sorriso infinito e se preparou para o primeiro acorde.
E sua casa, e seu bairro, e toda se cidade se inundaram de som e de alegria.

***
Quando menos se esperava, foi descoberto, no chão da copa da casa, um pozinho debaixo daquele piano.  E não era um pó mágico que irradiava sinfonias e noturnos por todos os lados: era um foco de cupins que ameaçava o instrumento e todos os sons.  Resultado: lá se foi o piano para o tratamento devido.
Só que dessa vez, a copa da casa não ficou sem música por muito tempo: a irmã mais velha da professora – mãe daquela sobrinha que tinha recebido há muitos anos o agora já velho piano Jersey –, se deu conta que nenhum de seus filhos se interessava muito por sons e teclas, e que até sua menina, não mais menina, já saíra de casa.  Assim, finalmente, ainda que com certas avarias aqui e ali, fruto de arteirices de décadas, o pequeno piano Jersey voltou para suas mãos prediletas. E feliz, o velho piano tornou a cantar.
E o que é melhor: não ficou muito tempo cantando sozinho, que o outro piano, livre de cupins e de pós desencantados, voltou para fazer dueto com o velho Jersey na copa da casa da rua Moraes Barros, justamente na época em que nascia o quarto filho da professora de música. E para embalar o pequeno, ela e suas três meninas – principalmente a doce Ruth, que seguiu os dedos da mãe no caminho dos teclados – abriram os instrumentos e, pianinho, pianinho, encheram de música aquele coração novo.
Embora a casa exalasse sons e encantamentos, a professora e seu amado concluíram que, se um piano era fundamental, dois simbolizavam quase um desperdício. Principalmente porque o chamado “Quartão” dos fundos da casa (de pé direito alto e teto sem forro) seria reformado para dar lugar aos quartos das crianças, deixando livre o aposento da frente, que se transformaria no “Quarto do Piano”.  No singular.
Depois de muito refletirem, a professora e seu marido, sempre democraticamente, decidiram que ficariam com o pequeno e antigo Jersey, e que o piano maior, o H.Kriebel, seguiria para a Escola de Música de Jundiaí, onde seria mais imponente e útil para as aulas de Dona Josette, outra mana musical daquela professora que viria a ser a avó da Anita – Anita, irmã de Bruno, o camarada.  Afinal, a professora Josette, quando jovem, também enviara heroicamente todo seu salário para a família, o que, de certa forma, contribuíra para que sua irmã comprasse seu primeiro piano.
E lá se foi o H.Kriebel para Jundiaí, enquanto seu parceiro Jersey transferiu-se da copa para seu “Quarto do Piano”, na rua Moraes Barros, em Piracicaba.
Eis que, mais de trinta anos depois, surge Anita – irmã de Bruno, o primogênito.  E a menina, nascida em Campinas – tal qual o irmão Bruno, o levado –, saiu de sua casa em Vinhedo, foi morar em Uberaba, viu-se em Turim, até que um dia voltou para Vinhedo. Que não é tão longe de Jundiaí.  A mesma Jundiaí onde sua tia-avó Josette continuava dando aulas de música. 
E não é que a Anita – irmã de Bruno, o observador –, resolveu seguir os passos (ou os dedos?) de sua avó e escolheu o piano para trilhar seus caminhos? 
E lá foi ela estudar com sua tia Josette. 
E lá foi ela surpreender sua tia Josette.
Pois se descobriu que a menina tinha as mãos e a alma moldadas para o piano e seus sorrisos. Pois se revelou que ela não era simplesmente a irmã de Bruno, o único. Era a Anita, ela mesma.
Foi então que seu pai, surpreendendo a Anita, o irmão da Anita, a mãe da Anita e a avó da Anita (aquela professora de piano do começo dessa história), comprou o agora velho piano H.Kriebel da Escola de Música de Jundiaí e o instalou (com laço de fita e banda de música) na sala da casa da menina, lá em Vinhedo.
Por isso hoje os dois pianos voltaram a tocar juntos, mesmo que em cidades diferentes: em Piracicaba, no “Quarto do Piano”, a avó da Anita abre a tampa do seu pequenino Jersey – que ela, professora-menina, comprou há tantos anos em sofridas e esperançosas prestações –, retira o feltro que recobre o teclado, relembra o amado e se prepara para tocar; em Vinhedo, neste mesmo instante, na sala de sua casa, Anita faz o mesmo ritual e se prepara para dedilhar o piano que um dia seu avô deu de presente para sua avó.
E a quatro mãos, como se acariciassem um mesmo e interminável sorriso de notas, as duas conversam por música.
Sob o olhar atento de Bruno, o amado.

                    Ilustração: Erasmo Spadotto - cedida pelo Jornal de Piracicaba
Publicado no Jornal de Piracicaba em  12/10/2012 e 19/10/2012